Introdução
Praticamente não nos envolvemos em debates acerca da composição e extensão das Escrituras do Antigo e Novo Testamento. Isso porque já nascemos com uma Bíblia na mão, não importa a tradição. As Sociedades Bíblicas já nos entregam a “Bíblia” pronta e não percebemos que a “Coleção de Escritos” ali contida tem um longo processo de formação e calorosas discussões. Premissas acerca da Autoridade da Igreja, Inspiração dos Textos Sagrados, de sua Preservação, da Revelação e outros assuntos são subjacentes à Canônica [1].
Embora o resultado da forma final das “bíblias” [2] seja decisão conciliar como veremos abaixo, é preciso um exame histórico-teológico da questão. Como diz F. F. Bruce [3]:
A crença cristã histórica é que o Espírito Santo, que presidiu à formação de cada um dos livros, também lhes dirigiu a seleção e incorporação, continuando assim a cumprir à promessa do Senhor de que ele guiaria os discípulos a toda verdade. Isso, no entanto, só pode ser discernido por uma percepção espiritual, e não por uma pesquisa histórica. Nosso propósito, então, é averiguar o que a pesquisa histórica revela sobre a origem do cânon neotestamentário. Alguns dirão que nós aceitamos os vinte e sete livros do Novo Testamento pela autoridade da Igreja, mas mesmo assim como essa instituição veio a reconhecer esses livros, e nenhum outro mais, como dignos de serem colocados no mesmo nível de inspiração e autoridade do cânon do Antigo Testamento?
Essas indagações nos conduzem a ver que muitos aspectos importantes acerca do Cânon ainda precisam ser debatidos. Para muitos, algumas questões resolvem-se apelando para as mesmas decisões conciliares. Por exemplo, entre os Protestantes, especialmente aqueles ligados à Confessionalidade Histórica, pode-se simplesmente apelar para uma Confissão e dar a discussão por encerrada. Vejamos o caso de nossos Símbolos, especialmente em sua Confissão de Fé. No Capítulo I e § 2 e 3, diz o Símbolo sobre a extensão do Cânon:
II. Sob o nome de Escritura Sagrada, ou Palavra de Deus escrita, incluem-se agora todos os livros do Velho e do Novo Testamento, que são os seguintes, todos dados por inspiração de Deus para serem a regra de fé e de prática: O Antigo Testamento: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, I Samuel, II Samuel, I Reis, II Reis, I Crônicas, II Crônicas, Esdras, Neemias, Ester, Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Isaías, Jeremias, Lamentações de Jeremias, Ezequiel, Daniel, Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias. O Novo Testamento: Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos, Romanos, I Coríntios, II Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, I Tessalonicenses, II Tessalonicenses, I Timóteo, II Timóteo, Tito, Filemon, Hebreus, Tiago, I Pedro, II Pedro, I João, II João, III João, Judas, Apocalipse. III. Os livros geralmente chamados Apócrifos, não sendo de inspiração divina, não fazem parte do cânon da Escritura; não são, portanto, de autoridade na Igreja de Deus, nem de modo algum podem ser aprovados ou empregados senão como escritos humanos.
Note que a CFW apresenta os 66 livros como o temos hoje nas Bíblias Protestantes, bem como a rejeição dos livros chamados apócrifos, mas não apresenta os critérios para esta coleção. Houve um longo processo histórico para aceitação e, ainda hoje, pelo menos entre os Protestantes, não há mais discussão sobre tal extensão.[4] No entanto, as Bíblias Católicas possuem uma extensão diferente dos Protestantes.
O estudo do Cânon é importante para que se possa obedecer a Deus de forma correta e não incorrer em morte: “Porque esta palavra não vos é vã, antes é a vossa vida; e por esta mesma palavra prolongareis os dias na terra a qual, passando o Jordão, ides a possuir” (Dt 32. 47).
Nome e Conceito (Canonicidade e Apócrifos) [5]
A palavra Cânon (kanw,n), de origem semita, significa cana de medir ou régua. Segundo informa Philipp Vielhauer, [6] o uso figurado do termo foi aplicado a diversas áreas: estética, gramatical, hermenêutica, ética, filosófica e religiosa. Passou a ter, então, o sentido de norma ou regra. O termo aparece 62 vezes no AT (Jó 31. 22; Is. 46. 6; 2 Rs. 18. 21).
No Novo Testamento (NT) a palavra kanón aparece 4 vezes: em Gl 6. 16: “e, a todos quantos andam conforme esta regra”; Paulo usa no sentido de regra moral ou lei moral e em 2Co. 10. 13, 15, 16, onde aparece respectivamente “reta”, “nossa regra”, “além”, com o sentido de esfera de ação demarcada por Deus.
Entre os Pais da Igreja, pode-se verificar que Clemente de Roma usa a palavra como “cânon de obediência”. Clemente de Alexandria chama a harmonia do Antigo e NT de “cânon eclesiástico”. Irineu, em referência ao Credo Batismal, o chama-o “Cânon da Verdade” (kanw.n tn/j avlhqei,aj). Policarpo chama o Evangelho de “Cânon da Fé”. As Sagradas Escrituras foram chamadas de “regra (cânon) de todas as coisas”, enquanto Isodoro de Pelúsio a chama de “divinas Escrituras, Cânon da Verdade”. Muitos são testemunhos antigos que poderiam ser alistadas aqui para mostra que o termo “cânon” já estava sendo utilizado como um padrão, uma regra.
É óbvio que a Igreja em si não precisou formar para si a ideia de um cânon,[7] até porque o Cristianismo, como descendente do Judaísmo (At 9.2;24.5,14;28.22), não estava sem uma “Escritura Sagrada”. Simplesmente, o Cristianismo recebeu como Palavra de Deus as “Antigas Escrituras” como autoridade a priori.[8] As palavras de Benjamin Warfield são interessantes aqui. Diz ele:
A igreja cristã não precisou formar para si a ideia de um ‘cânon’ [...], ou seja, de uma coleção de livros dados por Deus para ser a regra autoritativa de fé e prática. Ela herdou esta ideia da igreja judaica, juntamente com a coisa em si, as Escrituras judaicas, ou o cânon ‘do Antigo Testamento’ [...] A igreja cristã, portanto, nunca existiu sem a ‘Bíblia’ ou sem um ‘cânon’ [9]
Porém, o termo Cânon foi aplicado aos escritos do AT/NT no 4.º século e isso em dois sentidos: [10] primeiro, como “registro oficial”, um “catálogo”, aplicado à lista dos livros reconhecidos na Igreja como escritos sagrados. No segundo sentido, o termo foi usado como “norma normans” (norma normativa), aplicado à Coleção de Escritos Sagrados como regra de ensino e vida de igreja pelo conteúdo destes escritos. Portanto, quando a Igreja Cristã recebeu e confirmou a lista dos livros aceitos e recebidos como inspirados, a palavra cânon passou a ser usada para expressar o conteúdo das Escrituras como se encontra nestes livros. Assim, “cânon é o corpo de escritos havidos por únicos possuídos de autoridade normativa para a fé cristã, em contraste com os escritos que não o são, ainda que contemporâneo”.
Quanto ao termo “apócrifo” (gr. Apokryphos), que significa “oculto”, “secreto” ou “escondido”. Segundo Geisler,[11] o termo “geralmente se refere a livros polêmicos do AT que os protestantes rejeitam e os católicos romanos e as igrejas ortodoxas aceitam”. Porém, os que aceitam tais livros os chamam de “deuterocanônicos”, distinguindo, assim, dos livros do Cânon Judaico (AT) chamado de Protocanônico.
O termo foi aplicado primariamente a “livros místicos de sentido obscuro e esotérico que só se deveriam colocar nas mãos de uns poucos iniciados, capazes, por isso mesmo, de os entenderem, pois ao povo em geral eram inteiramente ininteligíveis”. Assim foi chamado o livro de Zoroastro. Posteriormente o termo passou a designar a literatura espúria, falsa ou fictícia e, por fim, aos heréticos. Daí “entre os cristãos”, diz Bentezen , o termo significar os “escritos que estão excluídos do Cânon”. Entre os Judeus havia um termo para diferenciar entre os Canônicos e Apócrifos: “os que mancham as mãos” e “os que não mancham as mãos”.
A Revelação Auto-Autenticada de Deus – Critério Primeiro para Canonicidade [14]
Para nossa discussão neste escrito, propomos estudar o tema do Cânon começando com o pressuposto da Revelação de Deus. Primeiro, porque, como Cristãos, justificamos nossas crenças no próprio Deus e não nas opiniões ou especulações humanas. Sendo assim, a Revelação é a garantia de nosso conhecimento. Na Luz do Senhor vemos a Luz (Sal 36.9). Ora, se em Cristo Jesus estão escondidos todos os tesouros da sabedoria, então o princípio de nossa sabedoria começa com o Senhor Jesus e sua revelação auto-autenticada (Col 3.2).
Sendo assim, primeiramente trataremos da auto-autenticação dos Documentos Bíblicos, percebendo que não é a Igreja que tem autoridade sobre as Escrituras, mas, sim ao contrário: as Escrituras, sendo Revelação de Deus, têm autoridade sobre a Igreja. Diferente dos Romanistas, não repousamos a nossa fé na Tradição, mas sobre o testemunho de Deus como registrado em sua Palavra.[15] São apropriadas as palavras de Charles Hodge [16]:
Não cremos que o Novo Testamento seja divino com base no testemunho da Igreja. Aceitamos os livros incluídos nas Escrituras canônicas sobre a dupla base da evidência interna e externa. Pode-se provar historicamente que esses livros foram escritos por homens cujos nomes carregam; e pode-se também provar que esses homens foram instrumentos devidamente autenticados do Espírito Santo. A evidência histórica que determina a autoria do Novo Testamento não é exclusivamente a dos pais cristãos. O testemunho dos escritores pagãos é, em alguns aspectos, de maior peso que o dos próprios pais. Podemos crer no testemunho da testemunho da história inglesa, eclesiástica e secular, de que os Trinta e Nove Artigos foram elaborados pelos reformadores ingleses, sem sermos tradicionalistas. De igual forma, podemos crer que os livros do Novo Testamento foram escritos pelos homens cujos nomes carregam sem admitir a tradição como parte da regra de fé. Além disso, a evidência externa de qualquer gênero é uma parte bastante subordinada do fundamento da fé protestante nas Escrituras. Esse fundamento é principalmente a natureza das doutrinas nela reveladas, bem como o testemunho do Espírito, com e pela verdade, ao coração e à consciência. Cremos nas Escrituras pela mesma razão que cremos no Decálogo.
Sendo assim, o fundamento para aceitação dos Livros autoritativos independe de alguém reconhecer ou não sua canonicidade. Antes, a “natureza (ou razões) da canonicidade é, portanto, logicamente distinta da história (ou reconhecimento) da canonicidade”. [17] Então, de que depende? Tenho, dentro deste arcabouço pressuposicional, que dois fatores são primordiais. O primeiro, a Inspiração torna a autoridade de um livro reconhecidamente divino. Se Deus falou, o que ele diz é autoridade suficiente. Na entrega de Sua Palavra, Deus mesmo é a sua garantia Cf. Gn 22. 16; Hb 6.13). Independente da resposta humana, os escritos são, em si mesmo, canônicos. A Escritura, portanto, não se torna divina através de reconhecimento individual ou coletivo [18]. Pode parecer que esse critério seja subjetivo, mas não é. Antes, ele é corroborado pela própria Escritura (Deut. 4.2; Pv 30. 5, 6; Apoc. 22. 18, 19). [19] Segundo, aliado à Inspiração, temos também a Providência. Nem tudo que Deus revelou foi preservado ou escrito (Nm 21.14; Js 10. 31; 2Cro 9.29; 12.15; Jo 21.25; 1Co 5.9; 12.28; 2Co 2.4; 7.8; 12.4, 7; Rev. 10.4), nem por isso era menos autoritativo do que o que foi escrito e preservado. O Cânon para e da igreja, então, deve ser aquele que foi inspirado e preservado. [20]
Nesse sentido, o que temos? Das coleções mais antigas da Bíblia, iniciando pelos Dez Mandamentos, [21] quando o próprio Senhor escreveu as Tábuas (Êx. 31.18), lemos também: “E aquelas tábuas eram obra de Deus; também a escritura era a mesma escritura de Deus, esculpida nas tábuas” (Êx 32.16; Dt 4.13; 10.4). As Tábuas foram guardadas e preservadas na Arca da Aliança (Dt 10.5). A partir daí, a revelação escrita e que seria preservada cresce por meio da daqueles a quem o Espírito Santo falou (2Pe 1.21). Desse modo, Moisés, como profeta de Deus (Dt 34.10), recebeu de Deus a ordem para escrever sua revelação (Dt 31. 24 – 26; Êx 17.14; 24.4; 34.27; Nm 33.2; Dt 31.22). O mesmo se deu com Josué (Js 24.26). Wayne Grudem chama a atenção de que esse acréscimo feito por Josué seria impensável frente à advertência de nada acrescentar à Palavra de Deus (Dt 4.2; 12.32). [22] A conclusão é que, ou Josué desobedeceu ou que estava tão certo de que o que ele escrevia era revelação autorizada de Deus. Os Escritos de Moisés foram recebidos como Palavra de Deus. Por exemplo, de Josué, que recebeu a ordem de estudar e guardar as palavras reveladas a Moisés (Js 1. 7,8) a Malaquias (4.4 – 6), a Lei revelada a Moisés considerada como a Palavra de Deus, não sendo preciso um concílio (ou a antiga igreja) a definir sua canonicidade.
Especialmente relevante é o aumento dos escritos por parte dos profetas (Cf. 1Sm 10.25; 1Cr 29.29; 2Cro 20.34; 1Rs 16.7; 2Cr 26.22; 32.32; Jr 30.2). A partir de então, cada escrito inspirado era reconhecido (testemunho interno do Espírito Santo?) por outros profetas. Daniel (9.2) reconheceu a autoridade dos escritos de Jeremias (25. 11, 12) [23]. O mesmo aconteceu com o trato que Jeremias deu a Miquéias (Jr 26.18), que o precedeu 125 anos antes. [24] Por volta de 435 a.C, já não mais havia acréscimo ao que ficou conhecido como “Tríplice Divisão”. Na literatura judaica após este período, estabelecido estava a certeza que não mais havia novas palavras dos profetas. Por exemplo, em 1Macabeus (9.27) se diz: “Israel caiu numa tribulação tão grande como não houvera desde que cessaram os profetas”. Sabedoria de Ben Siraque, também conhecido como Eclesiástico (c. 200-180), já mostra que o Antigo Testamento encontrava-se organizado em “a Lei, os Profetas e os outros Escritores” (Prólogo. Cf. 49.8 -10; 44 – 50). O segundo livro de Macabeus (c. 104-64 a.C; 2.13) relata os livros sagrados já reconhecidos, entre eles as “Memórias de Neemias”, os “livros referentes aos reis e aos profetas, os escritos de Davi e as cartas dos reis sobre as oferendas”. Digno de nota é que, já no período cristão, não encontramos absolutamente nenhuma discussão entre Jesus e os Líderes Religiosos de Israel sobre a extensão do Cânon do Antigo Testamento. Antes, as referências às Divisões do Antigo Testamento são abundantes (Lc 24.44; Cf. Mt 5.17; Lc 16.16,17). [26]
O mesmo pode ser dito Acerca do Novo Testamento. A comunidade cristã primitiva recebeu o Antigo Testamento como o temos hoje (Cf. Rm 3.2). Aqueles que foram comissionados por Cristo estavam cientes de que suas palavras eram revelação, a ponto de colocarem-na ao lado do Antigo Testamento. Segundo Vilhauer. [27]
O fato de que o cristianismo primitivo possui, desde o início, uma “Escritura Sagrada” no posteriormente assim chamado AT e que o usava, fornece critérios para o reconhecimento da canonicidade de um escrito cristão: um escrito cristão somente atingiu a categoria de uma ‘escritura sagrada’, portanto, validade canônica, quando é tratado do mesmo modo como o AT. Isso quer dizer, quando é usado como grafh,, e isso se revela no modo de citação. Portanto não já pelo simples fato de um escrito cristão ser citado tacitamente em outro escrito, e, sim, primeiro quando é citado, como o Antigo Testamento, como grafh, - por meio de fórmulas como le,gei h` grafh, (Gl 4.30), w`j kaqw.j ge,graptai (1Co 1.31; Rm 1.17, et passim), ou le,gei to. pneu/ma to. a[gion (Hb 3.7) – ele está no mesmo nível do AT, Sagrada Escritura, “canônico”.
Percebemos que o critério revelacional, ao invés do institucional, foi prioritário na aceitação de um corpus canônico neotestamentário. O reconhecimento Apostólico [28], à semelhança do reconhecimento profético, estava no fundamento para a autoridade do Novo Testamento. Tal como no Antigo Testamento, o Novo Testamento também fornece as indicações de sua canonicidade. Por exemplo, acerca das Cartas Paulinas, elas deveriam ser lidas publicamente nas igrejas. Em 1Tessalonicenses 5.27, Paulo “conjura” “pelo Senhor” que sua epístola fosse lida em todas as igrejas. Essa ordem só faria sentido dentro da concepção de que o que Paulo escrevia teria que ser considerado ensinamento do Senhor para a Igreja (Cf. Col 4.16). Com essa convicção, Paulo considerava que suas palavras eram aquelas que o “Espírito Santo” ensinava (1Co 2.13) de modo que suas instruções eram de autoridade divina. Diz o Apóstolo: “Se alguém cuida ser profeta, ou espiritual, reconheça que as coisas que vos escrevo são mandamentos do Senhor” (1Co 14. 37). Não por menos que a Igreja recebeu seus escritos como Palavra de Deus (1Tes 2.13; 2Tes 2.15) e que aqueles que não atentassem para suas Palavras, não deveriam ter associação com os Crentes. Diz ele: “Mas, se alguém não obedecer à nossa palavra por esta carta, notai o tal, e não vos mistureis com ele, para que se envergonhe” (2Tes 3.14).
De igual modo, outros escritos apostólicos também foram colocados lado a lado com o Antigo Testamento. Assim fez Pedro, por exemplo, pondo as Cartas de Paulo [29] ao lado das “demais Escrituras” que eram deturpadas pelos indoutos. Paulo também não tem o menor constrangimento ao ladear, chamando de Escritura, as palavras de Moisés junto ao Evangelho de Lucas (1Tm 5.18; Dt 25.4; Lc 10.7). De acordo com o argumento de Grudem: [30]
Se aceitamos os argumentos favoráveis ao ponto de vista tradicional da autoria dos escritos neotestamentários, então a maior parte do Novo Testamento pertence ao cânon por causa da autoria direta dos apóstolos. Isso incluiria Mateus; João; Romanos a Filemon (todas as epístolas paulinas); Tiago; 1 e 2 Pedro; 1, 2 e 3 João; e Apocalipse.
Mas, não consta acima os Evangelhos de Marcos, Lucas, Atos, Hebreus e Judas. Ora, o que sabemos acerca de Jesus Cristo depende da palavra escrita nestes Evangelhos. A proximidade dos relatos nas narrativas é tanta que, a rejeição de um deles implicará a rejeição dos outros. [31] Por exemplo, 606 dos 661 versículos de Marcos aparecem em Mateus. Dos 1068 versos de Mateus, cerca de 500 também se acham em Marcos. Há apenas 31 versos que estão em Marcos, mas não estão em Mateus e Lucas. [32] A relação entre Lucas e Mateus e Marcos é também considerável. Mateus e Lucas possuem 250 versos em comum, sem qualquer paralelo com Marcos. Ou seja, Mateus e Lucas compartilham de informações que Marcos não possui. Lucas compartilha 380 versos com Marcos, embora com poucas variações. Se o Evangelho de Lucas é, então, aceito como canônico pela comunidade primitiva, o mesmo se deu com Atos, também escrito por Lucas. Além do mais, tais escritos não apostólicos circularam lado a lado com os Escritos Apostólicos, tendo, portanto, o testemunho pessoal dos Apóstolos para confirmação da autoridade divina dos livros. [33]
Em tudo isso, verificamos que os Escritos Apostólicos, diferentemente dos Apócrifos, foram recebidos como um “corpo de verdade”, um “depósito” (1Tm 6.20, 21; 2Tm 2.14) ou, como diz o escritor Judas, “a fé que uma vez foi dada aos santos” (Jd 3), certamente pelos Apóstolos e Profetas, os Fundamentos da Igreja (Ef 2.20), de cujas palavras os Cristãos deveriam lembrarem-se (Jd 17).
Frederick F. Bruce, [34] após exaustiva pesquisa sobre a formação do Cânon, escreveu: “Portanto, todas as reivindicações para transmitir uma revelação adicional... são alegações falsas... se estas reivindicações são incorporadas nos livros que visam substituir ou completar a Bíblia, ou assumir a forma de extra-tradições bíblicas, tais reivindicações são proclamadas como dogmas pela autoridade eclesiástica”
E os outros escritos? Aplicação da abordagem pressuposicional do Cânon das Escrituras
Bom, alguém talvez possa objetar afirmando que o que foi escrito acima também possa ser aplicado aos Apócrifos (ou ao Corão, ou aos Vedas etc), visto que a Igreja Romana aceita os “deuterocanônicos”. No entanto, não foi se não em 1546, no Concílio de Trento, que a Igreja adotou tais livros oficialmente. Historicamente, alguns dos Pais aceitaram alguns Apócrifos do Novo Testamento. Por exemplo, a Epístola de Barnabé (c. 70-79 d.C), escrita por Clemente de Alexandria, faz parte do Códice Sinaítico, manuscrito do século IV. Ao mesmo tempo, escritos apostólicos tiveram sua autenticidade duvidada, como foi o caso de Hebreus, Tiago e Judas.
Não é que o testemunho histórico seja sem importância. Historicamente, os 27 livros do Novo Testamento já eram aceitos na comunidade pós-apostólica desde cedo. D. A. Carson [35] diz que “os quatro evangelhos, Atos, as 13 epístolas paulinas, 1 Pedro e 1 João são universalmente aceitos já bem cedo; a maior parte do restante do cânon do Novo Testamento já está estabelecida à época de Eusébio (c. 260 – 340 d.C)”. Porém, a primeira lista a incluir apenas os 27 livros como o temos hoje, é datada de 367 d.C numa carta escrita por Atanásio à igreja de Alexandria. No Ocidente, o debate sobre a composição do Novo Testamento como o que temos hoje encerra-se no Terceiro Concílio de Cartago (397), tendo a presença de Agostinho.
A despeito disso, devemos sempre apelar para a autoridade final da Revelação. Os Protestantes, além dos fatores históricos, devem rejeitar os Apócrifos (AT/NT) com base na reivindicação da autoridade final, especialmente na coerência da revelação. Como exemplo, podemos contrastar as palavras de Paulo em Primeira Coríntios 14.37, 38; em Gálatas 1.8 com as palavras do autor de Segundo Macabeus. Enquanto Paulo diz “se alguém cuida ser profeta, ou espiritual, reconheça que as coisas que vos escrevo são mandamentos do Senhor” (1Co 14.37), o autor de Macabeus diz: “Assim terminou a história de Nicanor. Como desde esse tempo a cidade ficou em poder dos hebreus, eu também porei aqui o ponto final em nossa história. Se consegui deixá-la bem escrita e construída, isso é o que eu queria. Se saiu vulgar e medíocre, fiz o melhor que podia” (2Mc 15.37,38). Em outra ocasião, o próprio autor de Macabeus reconheceu que são “com textos da Lei e dos Profetas” que se devia exortar ao encorajamento (15.9). Tais escritos não foram recebidos pelos crentes da Antiga nem da Nova Aliança.
Sem contar os erros históricos, éticos e teológicos contidos em tais livros. [36] Por exemplo, Tobias (c. 200 a.C) alega ter vivido quando da revolta de Jeroboão (c. 931 a.C) e a conquista de Israel pela Assíria (722 a.C), embora sua idade total, conforme registro, fosse de 158 anos (Cf. Tob 1.3-5; 14.11). De acordo com Judite, o rei da Assíria era Nabucodosor (Jud. 1.1, 7). Enquanto as Escrituras ensinam que Deus criou o mundo a partir do nada (Gn 1.1; Hb 6.3), o livro de Sabedoria ensina que havia matéria (7.17) e Segundo Macabeus ensina a oração pelos Mortos (12.45, 46).
Por fim, perceba no quadro abaixo a maneira correta de discutir o assunto: [37]
Idéia Incorreta de Canonicidade | Idéia Correta de Canonicidade |
A Igreja é a Determinadora do Cânon. | A Igreja é a Descobridora do Cânon. |
A Igreja é a Mãe do Cânon | A Igreja é a Filha do Cânon. |
A Igreja é o Magistrado do Cânon. | A Igreja é a Ministra do Cânon. |
A Igreja é a Reguladora do Cânon. | A Igreja é a Reconhecedora do Cânon. |
A Igreja é o Juiz do Cânon. | A Igreja é a Testemunha do Cânon. |
A Igreja é a Mestra do Cânon. | A Igreja é a Serva do Cânon. |
Obviamente, questões outras são levantadas e passíveis de muitas discussões. Dentre elas, a do fechamento do Cânon e a se há ou não a possibilidade de novas revelações escritas.
Porém, talvez a mais contemporânea seja a desconfiança do Cânon como o temos hoje. Especialmente no ressurgimento dos escrito Gnóstico [38] e por Críticas cinematográficas ao Cristianismo Tradicional [39], mas não menos em segmentos que agora não se denominam mais como igrejas. [40] No primeiro caso, a crítica é histórica, procurando compreender as razões que levaram ao Cristianismo a rejeitar os Gnósticos. [41] Não é muito difícil reconhecer o motivo da rejeição dos Escritos Gnósticos. Mas que a questão retorna ao cenário, tal como nos primeiros séculos, como bem pode ser visto pelas obras polemistas do Dr. Bart Ehrman. [42]
O segundo caso, e para mim mais preocupante, é fruto do subjetivismo kierkegaardeano em nossa época. Por uma voz interior têm rejeitado completamente as palavras das Escrituras. [43] Aliás, encontramos a formulação de um “cânon dentro do cânon”. Agora, os mais importantes são os Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João) e não as Cartas Paulinas ou mesmo o Antigo Testamento. Certo dia ouvi um líder de uma comunidade dizer: “Se o que Isaías ou Paulo dizem for contrário ao que Jesus Cristo diz, então fico com Cristo”.
Até parece extremamente piedoso, mas a implicação é que a Escritura, de Gênesis a Apocalipse, deve conter alguma contradição e, assim, não é ela toda revelação de Deus. Tal postura denunciaria, nas palavras de F.F. Bruce, [44] “uma incapacidade de apreciar o que realmente é o cânon [...]”. Além de criar duas realidades hermenêuticas: 1) a do próprio Cristo e; 2) a dos Apóstolos e Profetas. O resultado disso é a impressão de que os dois se contradizem, como se as Palavras dos Apóstolos e Profetas também não fossem as palavras de Cristo. [45] Por exemplo, Pedro disse que sobre os Profetas estava o Espírito de Cristo (2Pd 1.10-12). O Evangelho de Paulo é o mesmo do de Cristo (Ef 3.1 – 11) e rejeitá-lo ou corrompê-lo é tornar-se anátema (Gl 1.8). Desse modo podia Jesus dizer que consultando Moisés, os Profetas e os Escritos, encontrar-se-ia o próprio Cristo, a vida eterna (Jo. 5.39). A promessa feita a Abraão é chamada de Evangelho (Gal 3. 6) e quem fez esta promessa foi a Escritura!
Para os neo-evangélicos, sempre que alguma coisa soar (leia-se as palavras dos Profetas ou Apóstolos) diferente do que supostamente Jesus falou, [46] fica-se com o nível infalível (as palavras que concordam com Cristo) e rejeita-se o nível falível (as outras palavras). A conclusão seria: NEM toda ESCRITURA é DIVINAMENTE inspirada. E também: ALGUMAS profecias da Escritura SÃO de PARTICULAR INTERPRETAÇÃO (dos Profetas e Apóstolos).
A posição, portanto, é contraditória e perigosa. Assim, a implicação de tal postura é uma espécie de fideísmo. Porém, não temos Cristo sem Escritura; não temos Escritura sem Cristo. É Christus, Solus Christus EM Tota Scriptura, Sola Scriptura!
Sobre o autor: Ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil; Docente nos Seminários Presbiteriano do Norte - Recife; e no Seminário Pentecostal do Nordeste nas áreas de Teologia Exegética e Apologética. Mestrando em Teologia pelo Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper (Mackenzie). Casado e pai de duas filhas.
Fonte: Teologia Brasileira
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