Por J. C. Ryle
Lucas 1.5-12
O primeiro acontecimento narrado neste evangelho é a súbita aparição de um anjo a um sacerdote judeu chamado Zacarias. O anjo anuncia-lhe que milagrosamente ele se tomará pai de um menino e que esse menino será o precursor do Messias prometido há muito tempo. A Palavra de Deus havia predito claramente que, na vinda do Messias, alguém O precederia, a fim de preparar-Lhe o caminho (Ml 3.1). A sabedoria de Deus providenciou as coisas de tal modo que o precursor nasceria na família de um sacerdote.
Não podemos compreender claramente, em nossos dias, a imensa importância do anúncio feito por esse anjo. Para um judeu piedoso deve ter sido boas-novas de grande alegria! Foi o primeiro comunicado de Deus para Israel desde a época de Malaquias. O longo silêncio de quatrocentos anos foi quebrado. O anúncio do anjo dizia ao crente israelita que as semanas proféticas de Daniel se cumpriam completamente (Dn 9.25), que a mais preciosa promessa de Deus finalmente estava para se cumprir e que estava para surgir "a semente" por meio da qual todas as nações da terra seriam abençoadas (Gn 22.18 - ARC). Precisamos nos colocar no lugar de Zacarias, a fim de tributarmos a estes versículos o seu devido valor.
Primeiramente, observemos nesta passagem o belo testemunho proferido sobre o caráter de Zacarias e de Isabel. Somos informados que "ambos eram justos diante de Deus" e viviam "irrepreensivelmente em todos os preceitos e mandamentos do Senhor". Pouco importa se interpretamos a expressão "eram justos" como uma referência à justiça imputada ao crente no ato de sua justificação ou à justiça realizada no íntimo dos crentes por operação do Espírito Santo, no processo de santificação. Esses dois tipos de justiça nunca estão dissociados. Não existe qualquer "justo" que não seja santifícado e qualquer "santo" que não seja justificado. Basta saber que Zacarias e Isabel possuíam a graça divina, quando esta era muito rara, e observaram com devoção consciente todos os exaustivos preceitos da lei cerimonial, em uma época quando poucos israelitas se importavam com eles, exceto na aparência.
O que realmente chama a nossa atenção é o exemplo que esse casal santo oferece aos crentes. Todos devemos nos esforçar para servir a Deus fielmente e fazer brilhar toda a nossa luz, assim como eles o fizeram. Não esqueçamos as claríssimas palavras das Escrituras: "Aquele que pratica a justiça é justo" (1 Jo 3.7). Felizes são as famílias cristãs das quais podemos testemunhar que ambos, marido e mulher, são "justos" e se empenham para ter uma consciência livre de ofensas diante de Deus e dos homens (At 24.16).
Em segundo, observemos nesta passagem a árdua provação que Deus se agradou em trazer a Zacarias e Isabel. Eles "não tinham filhos". Um crente moderno dificilmente pode compreender o significado completo dessas palavras. Ao judeu da antigüidade elas transmitiam a idéia de uma aflição bastante severa. A esterilidade era uma das mais amargas experiências (1 Sm 1.10). A graça de Deus não torna uma pessoa imune a qualquer problema. Ainda que esse sacerdote santo e sua esposa eram "justos", eles tinham um "espinho na carne". Lembremos isto, se servimos a Cristo, e não nos assustemos com as provações. Ao invés disso, creiamos que uma mão de perfeita sabedoria está avaliando qual deve ser a nossa porção e que, ao disciplinar-nos, Deus visa fazer-nos "participantes da sua santidade" (Hb 12.10). Se as aflições nos levam para mais perto de Jesus, da Bíblia e da oração, elas são bênçãos! Talvez não pensemos assim. Mas pensaremos, quando acordarmos no mundo vindouro.
Em terceiro, observemos nesta passagem o instrumento pelo qual Deus anunciou o nascimento de João Batista. "Apareceu um anjo do Senhor" a Zacarias. Sem dúvida alguma, o ministério dos anjos é um assunto profundo. Em nenhuma outra parte da Bíblia encontramos menção tão freqüente aos anjos quanto na época do ministério terreno de nosso Senhor. Em nenhuma outra época lemos sobre tantas aparições de anjos quanto durante a encamação de Jesus e sua vinda ao mundo. O significado dessa circunstância é muito claro: a igreja deveria compreender que o Messias não é um anjo; é o Senhor dos anjos e dos homens. Os anjos anunciaram a sua vinda, proclamaram o seu nascimento, regozijaram-se quando Ele surgiu. E, ao fazerem tais coisas, deixaram bem claro a seguinte verdade: Aquele que veio para morrer pelos pecadores não era um dentre os anjos, era Alguém superior a eles — o Rei dos reis e Senhor dos senhores.
Acima de tudo, há uma coisa a respeito dos anjos que não devemos esquecer: eles se interessam profundamente pela obra de Jesus e pela salvação que Ele providenciou. Cantaram louvores sublimes quando o Filho de Deus veio para estabelecer a paz entre Deus e o homem, por intermédio de seu sangue. Regozijam-se quando pecadores se arrependem, quando homens se tornam filhos na família do Pai celestial. Deleitam-se em ministrar aos herdeiros da salvação. Enquanto estamos nesta terra, esforcemo-nos para ser como os anjos, tendo a maneira de pensar deles e compartilhando de suas alegrias. Este é o modo de estar em sintonia com o céu. As Escrituras afirmam sobre aqueles que lá entram: são "como os anjos" (Mc 12.25).
Finalmente, observemos nesta passagem o efeito que o aparecimento do anjo produziu na mente de Zacarias. Esse homem justo "turbou-se, e apoderou-se dele o temor". A sua experiência é exatamente a mesma de outros santos que passaram por situações semelhantes. Moisés diante da sarça ardente, Daniel às margens do rio Tigre, as mulheres no sepulcro de Jesus e o apóstolo João na ilha de Patmos — todos demonstraram temor semelhante ao de Zacarias. Assim como ele, esses outros santos tremeram e sentiram medo, quando contemplaram visões de coisas pertencentes ao outro mundo.
Como explicar esse temor? Existe apenas uma resposta: esse temor surge de nosso senso íntimo de fraqueza, culpa e corrupção. A visão de um habitante celestial inevitavelmente nos faz lembrar de nossa própria imperfeição e inconveniência natural para nos apresentarmos diante de Deus. Se os anjos são excessivamente grandes e tremendos, como será o Senhor deles?
Devemos bendizer a Deus porque temos um poderoso Mediador entre Ele e nós, Jesus Cristo, homem. Crendo nEle, podemos nos aproximar de Deus com intrepidez, esperando sem temor o Dia do Juízo. Quando os anjos poderosos saírem para ajuntar os eleitos de Deus, esses não terão motivo para ficar com medo. Os anjos são conservos e amigos dos eleitos de Deus (Ap 22.9).
Devemos tremer ao pensar no terror que sobrevirá aos ímpios naquele dia! Se mesmo os justos sentem-se perturbados por uma aparição súbita de espíritos amáveis, qual será a reação dos ímpios quando os anjos vierem para recolhê-los como palha destinada à fogueira? Os temores dos justos não têm fundamento e são efêmeros. Quando se manifestarem os temores dos perdidos, ficará comprovado que os ímpios tinham motivos corretos para esses temores, que permanecerão para sempre.
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