Evidentemente, grande é o mistério da piedade: Aquele que foi manifestado na carne foi justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória.
Almeida Revista e Atualizada.
O texto paulino, que muitos acreditam ser parte de um hino cristão primitivo, esboça aquilo que mais tarde veio a ficar conhecido como a doutrina dos estados de Cristo: sua humilhação e sua exaltação. Mas antes de adentrar nesse assunto, Paulo faz um breve intróito, dizendo que “grande é o mistério da piedade”. Penso que aqui o apóstolo tem algo muito mais amplo em mente do que meramente a devoção (pietas) cristã. Ele pode estar muito bem se referindo ao próprio sentido da História e para onde ela converge (cf. Ef 1.10).
Que Paulo usa o termo “mistério” para referir-se a algo que estava escondido e foi revelado (cf. Cl 1.27) pode ser provado pelo que ele diz a seguir: “Aquele que foi manifestado em carne”. O termo grego que o apóstolo usa para “manifestado” é ephanerothe, que tem justamente a ideia de tornar visível algo que estivera oculto. O fato de tal verbo estar na voz passiva não significa que Cristo foi criado ou que não teve vontade própria ao fazer-se carne, e sim que sua encarnação se deu por deliberação do Pai, com a qual o Filho plenamente consente (Jo 4.34), e “na plenitude do tempo” (Gl 4.4). Onde começa o estado de humilhação do Redentor (sua encarnação) é também onde começa o desvendar da História (o “rasgar do véu”).
Como que querendo mostrar que Cristo não demoraria em seu estado de humilhação, como certamente queriam seus inimigos, o apóstolo, num só fôlego, diz que “aquele que foi manifestado na carne foi justificado em espírito”, ressaltando, de uma vez por todas, que o Cristo prometido não veio apenas para ser humilhado em uma rude cruz, mas sobretudo para triunfar sobre ela e a morte. Isto ele fez ao ressuscitar dos mortos ao terceiro dia, o que patenteou definitivamente que Ele era, de fato, o Filho Unigênito de Deus (cf. Rm 1.4). Tal acontecimento marcou a ruptura entre o estado de humilhação e o de exaltação do Redentor – não porque o primeiro fosse irrelevante, visto que sem a encarnação não haveria o “está consumado” (Jo 19.30), mas porque o Descendente da mulher, para erguer de fato a bandeira do seu triunfo, deveria esmagar a cabeça da serpente (Gn 3.15), vencendo, com ela, a morte (1 Co 15.26; 54ss; 2 Tm 1.10). O contraste entre a humilhação do Redentor e sua exaltação também pode ser percebido pelas antíteses “manifestado x justificado” e “carne x espírito”[*].
Na sequência, o apóstolo vai dizer que o Redentor também foi “contemplado [ophten] por anjos”. Os anjos não participaram da ressurreição de Cristo, no sentido de lhe conferir vida, mas foram apenas testemunhas (cf. Mt 28.2) do poder com que o Espírito de santidade (Rm 1.4) reergueu Aquele que sobre uma horrenda cruz havia padecido naquela sexta-feira. Devemos nos guardar de associar tal texto à descida de Cristo ao Hades (expressa pelo Credo Apostólico), visto que não temos respaldo bíblico suficiente para argumentar que os anjos viram a Cristo em seu (suposto) estado intermediário, muito menos para dizer que Cristo realmente esteve lá.
O fato de Cristo ter sido “pregado aos gentios” deve ser entendido à luz do fato de que ele também foi “crido no mundo”, e vice-versa. O mensagem do evangelho não estava restrita a um povo em particular, como os judeus pensavam, mas espandia-se para além das fronteiras étnicas (cf. Ap 5.9). Alguns hão de argumentar, com base na afirmativa de que o Messias foi “crido no mundo”, que a obra do Redentor visava à salvação de toda humanidade. Mas tal pensamento é demasiadamente inócuo, visto que o apóstolo está se referindo à atuação do Espírito (o mesmo que ressuscitou a Cristo) naqueles que hão de crer na Palavra pregada, visto que é o Espírito Santo que nos outorga fé (salvífica) para crer. Além do quê, Paulo está se referindo ao mundo no qual o Verbo se fez carne. Ele não esperava que uma criatura que porventura estivesse andando de skate nos aneis de Saturno viesse a crer no evangelho.
Finalmente, o apóstolo diz que o Redentor foi “recebido na glória”. Não nos resta dúvida de que aqui ele esteja se referindo à exaltação de Cristo ao ser ascenso aos céus , visto que o termo que ele usa para “recebido”, no grego, tem a ideia de “ser exaltado; levantado”. Apesar de termos a liberdade teológica de englobar aqui a verdade de que Cristo “subiu aos céus e está assentado à direita de Deus Pai Todo-Poderoso, de onde há de vir para julgar os vivos e os mortos”, devemos cuidar para que não desprezemos o aspecto histórico (temporal) desta exaltação. Cristo foi exaltado de fato, e não apenas por uma conveniência teológica.
É nisto que creio.
Soli Deo Gloria!
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[*] Com isto, não estou endossando nenhum dualismo radical (e platônico, diga-se de passagem) entre corpo e espírito, visto que isso me levaria ao docetismo e tantas outras heresias cristológicas do período patrístico. Minha intenção foi apenas mostrar o triunfo de Cristo sobre a fraqueza da natureza humana, e só.
Autor: Leonardo Bruno Balbino
Fonte: [ Optica Reformata ]
1 comentários:
Amado irmão, estamos de volta com o blog Estreita Porta. Seguindo seu blog, faça-nos uma visita! Abraço e permaneçamos em Cristo.
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