Transubstanciação e a blasfêmia da Missa

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Por Frank Brito

E, como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo depois o juízo, assim também Cristo, oferecendo-se uma só vez para levar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o esperam para salvação”. (Hebreus 9.27-28)

Paulo escreveu aos Filipenses: “Porque para mim o viver é Cristo, e o morrer é lucro. Mas, se o viver na carne resultar para mim em fruto do meu trabalho, não sei então o que hei de escolher. Mas de ambos os lados estou em aperto, tendo desejo de partir e estar com Cristo, porque isto é ainda muito melhor”. (Fp 1.21-23) Ele estava em dividido entre dois desejos. Por um lado, ele desejava partir desta vida para estar com Cristo. Por outro lado, sabia que se continuasse vivo, poderia ainda dar muitos frutos para a Igreja. Apesar disso, o mesmo Paulo escreveu aos Colossenses: “o mistério que esteve oculto dos séculos, e das gerações; mas agora foi manifesto aos seus santos, a quem Deus quis fazer conhecer quais são as riquezas da glória deste mistério entre os gentios, que é Cristo em vós, a esperança da glória”. (Cl 1.26-27) E antes de subir aos céus, Jesus prometeu: “Eis que eu estou convosco todos os dias…” (Mateus 28.20) Isso nos leva à seguinte questão: Por qual motivo Paulo desejava partir para estar em Cristo se o próprio Jesus havia prometido que estaria conosco todos os dias? Se Jesus já está conosco, por qual motivo seria preciso Paulo partir para que estivesse com ele? O próprio Paulo não havia falado de Cristo como já estando em nós? E se Cristo já está conosco, por qual motivo as Escrituras falam de uma vinda futura de Jesus Cristo?

Não há qualquer contradição. Na última conversa que teve com os discípulos, Jesus anunciou: “Eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco, o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não no vê, nem o conhece; vós o conheceis, porque ele habita convosco e estará em vós. Não vos deixarei órfãos, voltarei para vós outros”.(Jo 14.16-18) O Espírito Santo é o meio pelo qual Jesus está conosco todos os dias. O Espírito Santo é o Espírito de Deus e o Espírito de Cristo: “Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se, de fato, o Espírito de Deus habita em vós. E, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele”. (Rm 8.9) “E, porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai”. (Gl 4.6) “Porque sei que disto me resultará salvação, pela vossa oração e pelo socorro do Espírito de Jesus Cristo. (Fp 1.19) Quando Paulo falou que queria partir para estar com Cristo, Ele estava falando na presença corporal de Cristo. Jesus não está corporalmente entre nós. Somente por meio de Seu Espírito.

Jesus não estará para sempre ausente corporalmente. “Esse Jesus, que dentre vós foi elevado para o céu, há de vir assim como para o céu o vistes ir. (At 1.11) “Eis que vem com as nuvens, e todo olho o verá, até quantos o traspassaram. E todas as tribos da terra se lamentarão sobre ele. Certamente. Amém! Eu sou o Alfa e Ômega, diz o Senhor Deus, aquele que é, que era e que há de vir, o Todo-Poderoso”. (Ap 1.7-8) No sermão profético (Mt 24, Mc 13, Lc 21), Ele avisou que no decorrer da história, antes da segunda vinda, muitos diriam: “Eis aqui o Cristo! ou: Ei-lo ali!”(Mc 13.21)

Se, pois, alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! ou: Ei-lo aí! não acrediteis… E farão grandes sinais e prodígios; de modo que, se possível fora, enganariam até os eleitos”. (Mateus 24.23-24)

Dir-vos-ão: Ei-lo ali! ou: Ei-lo aqui! Não vades, nem os sigais; pois, assim como o relâmpago, fuzilando em uma extremidade. do céu, ilumina até a outra extremidade, assim será também o Filho do homem no seu dia.(Lucas 17.23-24)

Eis que vem com as nuvens, e todo olho o verá, até mesmo aqueles que o traspassaram; e todas as tribos da terra se lamentarão sobre ele. Sim. Amém”. (Apocalipse 1.7)

Cristo já está presente na terra por meio do Espírito Santo, mas corporalmente permanecerá no céu até a segunda vinda. Quando Ele voltar, todo olho o verá, isto é, será uma manifestação universalmente visível, de forma que não haverá nenhuma dúvida sobre o que estará acontecendo. Por conta disso, Jesus avisou que quando Ele viesse, não seria necessário dizer: “Eis aqui o Cristo! ou: Ei-lo aí!” Se a vinda de Jesus Cristo será uma manifestação universalmente visível, não haverá nenhuma dúvida sobre o que estará acontecendo de forma que seja necessário alguém demonstrar.

Isto, por si só, mostra que o dogma católico romano da transubstanciação não pode ser verdadeiro. Este dogma foi definido pelo Concílio de Trento na Sessão XIII, com as seguintes palavras:

Cap. 3. — A excelência da Eucaristia sobre os outros sacramentos
A Santíssima Eucaristia tem de comum com os demais sacramentos o ser o símbolo de uma coisa sagrada e a forma visível da graça invisível. A sua excelência e singularidade está em que os outros sacramentos só têm a virtude de santificar, quando alguém faz uso deles, ao passo que na Eucaristia está o próprio autor da santidade, antes de qualquer uso [cân. 4]. Pois, não haviam ainda os Apóstolos recebido das mãos do Senhor a Eucaristia (Mt 26, 26; Mc 14, 22) , quando ele afirmava ser na verdade o seu corpo aquilo que lhes dava. Foi também sempre esta a fé na Igreja de Deus: que logo depois da consagração estão o verdadeiro corpo de Nosso Senhor e seu verdadeiro sangue conjuntamente com sua alma e sua divindade, sob as espécies de pão e de vinho, isto é, seu corpo sob a espécie de pão e seu sangue sob a espécie de vinho, por força das palavras mesmas; mas o mesmo corpo também está sob a espécie de vinho, e o sangue sob a espécie de pão, e a alma sob uma e outra, por força daquela natural conexão e concomitância, com que as partes de Cristo Nosso Senhor, que já ressuscitou dos mortos para nunca mais morrer (Rom 6,9) , estão unidas entre si; e a divindade por causa daquela sua admirável união hipostática com o corpo e a alma [cân. l e3]. Assim, é bem verdade que tanto uma como outra espécie contêm tanto quanto as duas espécies juntas. Pois o Cristo todo inteiro está sob a espécie de pão e sob a mínima parte desta espécie, bem como sob a espécie de vinho e sob qualquer das partes desta espécie.
Cânones sobre a Santíssima Eucaristia
883. Cân. l. Se alguém negar que no Santíssimo Sacramento da Eucaristia está contido verdadeira, real e substancialmente o corpo e sangue juntamente com a alma e divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, e por conseguinte o Cristo todo, e disser que somente está nele como sinal, figura ou virtude — seja excomungado [cfr. n° 874 e 876].

O catolicismo romano defende que Jesus Cristo já está na terra, não somente por Seu Espírito, mas corporalmente também. A cada missa, a hóstia e o vinho deixam de ser o que eram e se transformam no corpo e sangue de Cristo. A aparência de hóstia e vinho continua, mas não é verdadeiramente hóstia e vinho. É o próprio Cristo corporalmente. E, segundo o Concílio “irreformável” de Trento, quem negar tal coisa é anátema e excomungado. Jesus avisou: “Se, pois, alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! ou: Ei-lo aí! não acrediteis… E farão grandes sinais e prodígios; de modo que, se possível fora, enganariam até os eleitos”. (Mt 24.23-24) No decorrer da história, o catolicismo buscou confirmar que Cristo está corporalmente na Eucaristia por meio de sinais e prodígios. Um dos mais famosos foi o milagre eucarístico de Lanciano ocorrido no século VIII, na cidade italiana de Lanciano. Foi a inexplicável e extraordinária transformação da hóstia em carne humana e do vinho em sangue humano, durante uma missa, sendo reconhecido como milagre pela Igreja Romana em 1574 e por diversos estudos científicos. Este é considerado um dos mais famosos, porém não é o único: aproximadamente 130 milagres eucarísticos já foram relatados.

A transubstanciação é um dogma importante do romanismo, pois é o fundamento de outro dogma, o sacrifício propiciatório da missa. Este dogma foi definido pelo Concílio de Trento, na Sessão XXII, com as seguintes palavras:

Cap. 2. — O sacrifício visível é propiciatório pelos vivos e defuntos
E como neste divino sacrifício, que se realiza na Missa, se encerra e é sacrificado incruentamente aquele mesmo Cristo que uma só vez cruentamente no altar da cruz se ofereceu a si mesmo (Heb 9,27) , ensina o santo Concilio que este sacrifício é verdadeiramente propiciatório [cân. 3], e que, se com coração sincero e fé verdadeira, com temor e reverência, contritos e penitentes nos achegarmos a Deus, conseguiremos misericórdia e acharemos graça no auxilio oportuno (Heb 14,16). Porquanto, aplacado o Senhor com a oblação dele e concedendo o dom da graça e da penitência, perdoa os maiores delitos e pecados. Pois uma e mesma é a vítima: e aquele que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que, outrora, se ofereceu na Cruz, divergindo, apenas, o modo de oferecer. Os frutos da oblação cruenta se recebem abundantemente por meio desta oblação incruenta, nem tão pouco esta derroga aquela [cân. 4]. Por isso, com razão se oferece, consoante a Tradição apostólica, este sacrifício incruento, não só pelos pecados, pelas penas, pelas satisfações e por outras necessidades dos fiéis vivos, mas também pelos que morreram em Cristo, e que não estão plenamente purificados [cân. 3].

Cân. 3. Se alguém disser que o sacrifício da Missa é somente de louvor e ação de graças, ou mera comemoração do sacrifício consumado na cruz, mas que não é propiciatório, ou que só aproveita ao que comunga, e que não se deve oferecer pelos vivos e defuntos, pelos pecados, penas, satisfações e outras necessidades — seja excomungado.
Cân. 4. Se alguém disser que o santo sacrifício da Missa é uma blasfêmia contra o santíssimo sacrifício que Cristo realizou na Cruz, ou que aquele derroga este — seja excomungado.
Cân. 6. Se alguém disser que o Cânon da Missa contém erros e por isso se deve ab-rogar – seja excomungado.

É interessante notar que o Concílio cita Hebreus 9 neste capítulo. O fato é que o nono capítulo de Hebreus contradiz o que o Concílio de Trento diz sobre o sacrifício propiciatório de Jesus Cristo na missa:

Ora, também o primeiro pacto tinha ordenanças de serviço sagrado, e um santuário terrestre. Pois foi preparada uma tenda, a primeira, na qual estavam o candeeiro, e a mesa, e os pães da proposição; a essa se chama o santo lugar; mas depois do segundo véu estava a tenda que se chama o santo dos santos, que tinha o incensário de ouro, e a arca do pacto, toda coberta de ouro em redor; na qual estava um vaso de ouro, que continha o maná, e a vara de Arão, que tinha brotado, e as tábuas do pacto; e sobre a arca os querubins da glória, que cobriam o propiciatório; das quais coisas não falaremos agora particularmente. Ora, estando estas coisas assim preparadas, entram continuamente na primeira tenda os sacerdotes, celebrando os serviços sagrados; mas na segunda só o sumo sacerdote, uma vez por ano, não sem sangue, o qual ele oferece por si mesmo e pelos erros do povo; dando o Espírito Santo a entender com isso, que o caminho do santuário não está descoberto, enquanto subsiste a primeira tenda, que é uma parábola para o tempo presente, conforme a qual se oferecem tando dons como sacrifícios que, quanto à consciência, não podem aperfeiçoar aquele que presta o culto; sendo somente, no tocante a comidas, e bebidas, e várias abluções, umas ordenanças da carne, impostas até um tempo de reforma. Mas Cristo, tendo vindo como sumo sacerdote dos bens já realizados, por meio do maior e mais perfeito tabernáculo (não feito por mãos, isto é, não desta criação), e não pelo sangue de bodes e novilhos, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez por todas no santo lugar, havendo obtido uma eterna redenção. Porque, se a aspersão do sangue de bodes e de touros, e das cinzas duma novilha santifica os contaminados, quanto à purificação da carne, quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu a si mesmo imaculado a Deus, purificará das obras mortas a vossa consciência, para servirdes ao Deus vivo? E por isso é mediador de um novo pacto, para que, intervindo a morte para remissão das transgressões cometidas debaixo do primeiro pacto, os chamados recebam a promessa da herança eterna. Pois onde há testamento, necessário é que intervenha a morte do testador. Porque um testamento não tem torça senão pela morte, visto que nunca tem valor enquanto o testador vive. Pelo que nem o primeiro pacto foi consagrado sem sangue; porque, havendo Moisés anunciado a todo o povo todos os mandamentos segundo a lei, tomou o sangue dos novilhos e dos bodes, com água, lã purpúrea e hissopo e aspergiu tanto o próprio livro como todo o povo, dizendo: este é o sangue do pacto que Deus ordenou para vós. Semelhantemente aspergiu com sangue também o tabernáculo e todos os vasos do serviço sagrado. E quase todas as coisas, segundo a lei, se purificam com sangue; e sem derramamento de sangue não há remissão. Era necessário, portanto, que as figuras das coisas que estão no céu fossem purificadas com tais sacrifícios, mas as próprias coisas celestiais com sacrifícios melhores do que estes. Pois Cristo não entrou num santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, mas no próprio céu, para agora comparecer por nós perante a face de Deus; nem também para se oferecer muitas vezes, como o sumo sacerdote de ano em ano entra no santo lugar com sangue alheio; doutra forma, necessário lhe seria padecer muitas vezes desde a fundação do mundo; mas agora, na consumação dos séculos, uma vez por todas se manifestou, para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo. E, como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo depois o juízo, assim também Cristo, oferecendo-se uma só vez para levar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o esperam para salvação”. (Hebreus 9.1-28)

Aqui o texto compara o Antigo Pacto, estabelecido por Moisés, com o Novo Pacto, estabelecido por Jesus. Ele diz que o sistema cerimonial do Antigo Pacto era uma “parábola para o tempo presente”. A Lei continha diversos mandamentos, ritos, costumes e cerimônias que eram somente sombras que se cumpriram em Jesus Cristo. As sombras foram abolidas, mas a substância e realidade significadas pelas sombras continuam de pé. Tais coisas apontavam para Cristo, o perfeito sacrifício. O Antigo Pacto contem a mesma substância do Novo Pacto, mas em sombras e figuras. No capítulo seguinte, ele continua:

“Porque a lei, tendo a sombra dos bens futuros, e não a imagem exata das coisas, não pode nunca, pelos mesmos sacrifícios que continuamente se oferecem de ano em ano, aperfeiçoar os que se chegam a Deus. Doutra maneira, não teriam deixado de ser oferecidos? (Hebreus 10.1-2)

Aqui ele reforça que os sacrifícios de animais eram somente sombras (ou como ele havia dito no capítulo anterior, “parábolas”) daquilo que haveria de vir, o sacrifício de Jesus Cristo. Em seguida, ele prova a ineficácia destes sacrifícios lembrando que tais sacrifícios eram oferecidos continuamente. Ele explica que o fato de serem oferecidos continuamente significava que eram ineficazes. “Doutra maneira, não teriam deixado de ser oferecidos?” Ele continua:

Ora, todo sacerdote se apresenta dia após dia, ministrando e oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios, que nunca podem tirar pecados; mas este, havendo oferecido um único sacrifício pelos pecados, assentou-se para sempre à direita de Deus, daí por diante esperando, até que os seus inimigos sejam postos por escabelo de seus pés. Pois com uma só oferta tem aperfeiçoado para sempre os que estão sendo santificados”.(Hebreus 10.11-14)

Isto deixa claro que o sacrifício único de Jesus é suficiente para cumprir tudo o que precisa ser cumprido naqueles que serão santificados. Os múltiplos sacrifícios dos animais demonstram a ineficácia destes sacrifícios. A eficácia do sacrifício de Jesus é demonstrado pelo fato dele acontecer uma única vez, em contraste com os sacrifícios de animais que eram múltiplos. Se o apóstolo e os cristãos cressem e ensinassem que Jesus está corporalmente nas mãos do padre sendo sacrificado a cada missa, este argumento não faria qualquer sentido.

O Concílio de Trento, cita Hebreus 9 com a intenção de se esquivar dessa conclusão inevitável e diz: “E como neste divino sacrifício, que se realiza na Missa, se encerra e é sacrificado incruentamente aquele mesmo Cristo que uma só vez cruentamente no altar da cruz se ofereceu a si mesmo (Hb 9,27)…” O Concílio de Trento, para se esquivar da conclusão óbvia de Hebreus, argumenta que os sacrifícios múltiplos são feitos incruentemente enquanto o sacrifício do qual o livro de Hebreus se refere como sendo único é o sacrifício feito cruentamente. “Cruentamente” significa “com derramamento de sangue”. “Incruentamente” significa “sem derramamento de sangue”. Mas essa distinção não é de qualquer forma satisfatória. Primeiro, se o sacrifício da missa é feito incruentamente, então ele não pode ser de forma alguma propiciatório ou eficáz. Pois o apóstolo diz claramente que “sem derramamento de sangue não há remissão”. ( Hebreus 9.22) Segundo, se Jesus Cristo é sacrificado incruentamente em cada missa, continua de pé o argumento de que a repetição de sacrifícios demonstram a sua ineficácia e, portanto, o sacrifício da missa é ineficaz.

Um dos textos bases usado pelo catolicismo romano para defender a necessidade da transubstanciação e do sacrifício da missa está no Evangelho de João:

Disse-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos”. (João 6.53)

O catolicismo romano defende que este texto se cumpre no sacramento na missa quando o pão e o vinho literalmente se transformam no corpo e no sangue de Jesus, estando presente também a sua alma e a sua Divindade, de forma que seja possível Jesus ser literalmente sacrificado e literalmente ingerido pelos fiéis. Como já foi demonstrado, isto contradiz o ensino bíblico de que Cristo permanecerá corporalmente ausente da terra até a segunda vinda. Contradiz também o ensino bíblico de que o sacrifício de Cristo é único e não pode ser repetido. De que maneira, então, as palavras de João 6 devem ser compreendidas?

Em qualquer texto que lemos e desejamos entender, seja da Bíblia ou não, devemos estar atentos tanto para o contexto imediato quanto para o contexto geral no qual o texto está inserido. A linguagem de Jesus em João 6 é muito frequente por todo o Evangelho de João. No começo de seu discurso, Jesus disse: “Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome; e quem crê em mim nunca terá sede”. (Jo 6.35) A expressão “Eu sou” seguida de alguma comparação aparece sete vezes no Evangelho de João:

1) Eu sou o pão vivo que desceu do céu. (6.51)

2) Eu sou a luz do mundo. (8.12)

3) Eu sou a porta das das ovelhas. (10.7)

4) Eu sou o bom pastor. (10.11)

5) Eu sou a ressurreição e a vida. (11.25)

6) Eu sou o caminho, a verdade e a vida. (15.1)

7) Eu sou a videira. (15.5)

Um dos maiores objetivos de João com seu Evangelho foi identificar Jesus como Deus (coisa que ele enfatiza já no primeiro verso do livro). “Então, disse Moisés a Deus: Eis que quando vier aos filhos de Israel e lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou a vós; e eles me disserem: Qual é o seu nome? Que lhes direi? E disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós”. (Êx 3.13-14 ) “Disse-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que, antes que Abraão existisse, EU SOU”.(Jo 8.58)

O número sete na numerologia bíblica indica plenitude, consumação, perfeição. No Apocalipse, escrito pelo mesmo Apóstolo, há sete igrejas, sete selos, sete trombetas, sete cálices e sete anjos. Gênesis fala dos sete dias na criação. Os sacerdotes do Antigo Testamento aspergiam sete vezes o sangue do sacrifício. Quando Israel herdou a terra prometida, Deus mandou que destruíssem sete nações. Antes da destruição de Jericó por meio de Josué, os soldados deram sete voltas na cidade e sete sacerdotes que tocaram sete buzinas.

No Evangelho de João há sete sinais e Jesus faz sete comparações começando com “Eu sou”. Em nenhuma destas comparações, o que ele diz pode ser entendido literalmente. João 6 não é exceção. Jesus disse:

Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram. Este é o pão que desce do céu, para que o que dele comer não morra. Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer desse pão, viverá para sempre; e o pão que eu der é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo”. ( João 6.49-51)

O significado do que Jesus disse aí é idêntico ao que ele havia dito para a mulher samaritana:

Veio uma mulher de Sumária tirar água. Disse-lhe Jesus: Dá-me de beber. Porque os seus discípulos tinham ido à cidade comprar comida. Disse-lhe, pois, a mulher samaritana: Como, sendo tu judeu, me pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana ( porque os judeus não se comunicam com os samaritanos)? Jesus respondeu e disse-lhe: Se tu conheceras o dom de Deus e quem é o que te diz: Dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva. Disse-lhe a mulher: Senhor, tu não tens com que a tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva? És tu maior do que Jacó, o nosso pai, que nos deu o poço, bebendo ele próprio dele, e os seus filhos, e o seu gado? Jesus respondeu e disse-lhe: Qualquer que beber desta água tornará a ter sede, mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água a jorrar para a vida eterna. Disse-lhe a mulher: Senhor, dá-me dessa água, para que não mais tenha sede e não venha aqui tirála”. (Jo 4.7-15)

Todos os principais elementos do discurso de Jesus em João 6 na sinagoga de Cafarnaum estão presentes na conversa de João 4 com a mulher samaritana:

1) Nas duas ocasiões os ouvintes ficam confusos porque pensam que Ele está falando literalmente e Ele não está. Essa confusão existiu também na conversa que Jesus teve com Nicodemos: “Disse-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho? Porventura, pode tornar a entrar no ventre de sua mãe e nascer?” (Jo 3.4) No caso da mulher samaritana, ela pensa que Jesus está falando de água literal de beber: “Disse-lhe a mulher: Senhor, tu não tens com que a tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva?”. Mas Jesus deixou claro que a água não poderia ser entendida literalmente: “Mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água a jorrar para a vida eterna”. Em outra ocasião ele deixa claro que esta água é o Espírito Santo: “Quem crê em mim, como diz a Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre. E isso disse ele do Espírito, que haviam de receber os que nele cressem; porque o Espírito Santo ainda não fora dado, por ainda Jesus não ter sido glorificado”. (Jo 7.38-39) A mesma confusão que existiu em Sua conversa com Nicodemos, existiu na conversa com a mulher samaritana e também no discurso de João 6: “Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como nos pode dar este a sua carne a comer?” (João 6.52) Nas três ocasiões, os ouvintes entenderam que Jesus estava falando literalmente quando ele não estava.

2) Tanto na conversa com a mulher samaritana quanto no discurso de João 6, Jesus usou um acontecimento da história de Israel para transmitir uma realidade espiritual presente: “És tu maior do que Jacó, o nosso pai, que nos deu o poço, bebendo ele próprio dele, e os seus filhos, e o seu gado? Jesus respondeu e disse-lhe: Qualquer que beber desta água tornará a ter sede, mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água a jorrar para a vida eterna”. (Jo 4.12-14) Esse argumento é substancialmente o mesmo de João 6, “Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram. Este é o pão que desce do céu, para que o que dele comer não morra”. (Jo 6.49-50) Nos dois casos, Jesus usa um evento importante da história de Israel para ilustrar como ele trazia algo espiritualmente superior. O verdadeiro sentido de comer e beber tanto em João 6 quanto em João 4 é explicado pelo próprio Jesus: “E Jesus lhes disse: Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome; e quem crê em mim nunca terá sede”. (Jo 6.35)

O Apóstolo Paulo também falou sobre “vossos pais que comeram o maná no deserto e morreram”: “Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram todos sob a nuvem, e todos passaram pelo mar… Todos eles comeram de um só manjar espiritual… Entretanto, Deus não se agradou da maioria deles, razão por que ficaram prostrados no deserto… Não vos façais, pois, idólatras, como alguns deles… caíram, num só dia, vinte e três mil”. (I Co 10.1-8) O manjar espiritual aqui é o maná. Como Jesus havia explicado, Paulo argumentou que o fato deles terem comido do maná não foi suficiente para garantir a vida eterna. Vinte e três mil morreram condenados por Deus como idolatras. Diferente do maná, Jesus explicou que quem comesse de sua carne, teria a garantia de não ser condenado. “Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram… Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer desse pão, viverá para sempre”. A diferença crucial entre os que comeram do maná e os que comem do pão da vida é que os que comiam do maná tinham a garantia de alimentação corporal, mas continuavam sob a possibilidade de condenação espiritual (o que ocorreu com vinte e três mil). Mas aqueles que comem do pão da vida, não estão sob o mesmo risco, mas tem a garantia que “viverá para sempre”.

Se em João 6 Jesus estivesse se referindo à hóstia e vinho da missa, então todos que jamais participaram da Eucaristia poderiam ter certeza infalível que nada poderia impedi-los de receberem a vida eterna. Para ser salvo, seria necessário somente participar da Eucaristia, pois Jesus deixou claro que “se alguém comer desse pão, viverá para sempre”. Se fosse possível alguém comer desse pão e posteriormente ser condenado, então a comparação que Jesus faz com o maná não faria qualquer sentido. A comparação dele é justamente que com o maná, muitos comeram e ainda assim foram condenados, mas que com o pão da vida, não há essa possibilidade. Sendo assim, comer e beber em João 6 não pode ser outra coisa se não “crer no Evangelho”.

Porque preparas tu os dentes e o ventre? Crê, e tu o comeste”. (Agostinho de Hipona)

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