Introdução
Este breve artigo é uma resposta ao artigo “Mateus 24.24: É possível enganar os escolhidos?” (publicado em cacp.org.br). Irei não apenas mostrar os erros da interpretação desse artigo, mas pretendo construir exegeticamente uma compreensão correta do significado do texto.
1. O erro interpretativo
A interpretação arminiana usa textos como At 20.16 e Rm 12.18 para fundamentar a compreensão de que os eleitos podem ser “enganados” se desviando da verdade para seguir os falsos mestres. Entretanto, não vejo como tal interpretação não comete a falácia exegética chamada “paralelismo verbal”. Paralelismo verbal é a enumeração de paralelismos verbais de obras literárias como se esses meros fenômenos demonstrassem elos conceituais ou mesmo dependência.[1] Ou seja, tanto o texto de Atos como o texto de Romanos estão tratando de coisas diferentes em contextos diferentes. Além dessa, o artigo comete outras falácias como: A falácia da sinonímia, a falácia do uso seletivo e preconceituoso das evidências, a falácia das disjunções e restrições semânticas injustificadas, etc.
Portanto, toda a interpretação não somente falha em sua análise exegética (não há discussão quanto a gramática, contexto, etc) como foi completamente erguido sobre o fundamento de areia das falácias.
2. Contexto da passagem
Sem sombra de dúvidas, Mateus 24 é uma crux interpretum. No contexto mais amplo, Jesus está na Judéia (19.1-25.46). Em 24.1-24.46 temos o sermão da oliveira, o último grande discurso de Jesus nesse evangelho, mas como nosso interesse se limita ao v.24, não irei entrar em maiores detalhes contextuais.
Principalmente com a destruição do templo judaico em 70 d.C., iriam surgir vários falsos mestres, dizendo que são messias, e é nesse contexto que temos a expressão “...para enganar, se possível, os próprios eleitos”.
3. Análise exegética
O “se possível” não questiona a segurança do eleito, mais do que questiona a inevitabilidade do cálice de Jesus (26.39).[2] O verbo aoristo ativo “enganar” (πλανῆσαι) é um infinitivo propositivo (ou seja, para enganar, expressando o propósito), o “se possível” refere-se a intenção dos impostores, como Carson notou: “eles pretendem, se possível, enganar até mesmo os eleitos – sem nenhum comentário sobre o quanto, no final, esses ataques serão bem sucedidos.[3]
O termo eleito é repetido no v. 22 e depois no v. 33. Esses são aqueles a quem Deus elegeu soberanamente, os quais, entretanto, serão finalmente identificados somente na revelação escatológica. No entanto, é evidente que há aqueles que são patentemente relacionados com os propósitos de Deus nesta terra e aqueles que não são.
Certamente existe a inter-relação entre a soberania eletiva de Deus e a responsabilidade humana. Na perspectiva do evangelho, alguém se protege dos erros (pelo menos em parte) ao tomar as precauções apropriadas, contra o erro, e isso não contraria o imutável fiat Divino. A tentação sempre é uma realidade e precisa ser fortemente resistida.
Se tomarmos a linguagem de “eleito” no seu sentido mais forte, então nenhum desvio para a perdição ocorrerá. Não por causa de algo invencível e intrínseco ao eleito, mas por causa da “esfera conceitual” (do termo eleito), a questão nem deve ser levantada.[4]
O próximo verso sustenta nossa interpretação. O verso 25 contém no original, três palavras gregas, onde Jesus acentua sua predição. Os discípulos não terão desculpas quando a feroz tribulação chegar, pois foram avisados. Por causa desse aviso eles não serão perturbados, antes sua fé em Jesus será confirmada.[5] Jesus estava dizendo que, se fosse possível tais falsos mestres enganarem os eleitos, eles o fariam. No entanto, ao saberem coisas que iriam passar, isso deveria fortalecê-los, e quando a tribulação chegasse, eles iriam lembrar-se da profecia, e isso os ajudaria a não ficarem impressionados.[6]
4. O uso do Antigo Testamento
Os ecos veterotestamentários são evidências cumulativas para nossa interpretação. Podemos perceber ecos de Deuteronômio 13.1-3:1
“Quando profeta ou sonhador se levantar no meio de ti e te anunciar um sinal ou prodígio, suceder o tal sinal ou prodígio de que te houver falado, e disser: Vamos após outros deuses, que não conheceste, e sirvamo-los, não ouvirás as palavras desse profeta ou sonhador; porquanto o SENHOR, vosso Deus, vos prova, para saber se amais o SENHOR, vosso Deus, de todo o vosso coração e de toda a vossa alma.”
Os falsos profetas dessa perícope não eram pra desviar os eleitos, mas eram uma “prova” para ver quem realmente amava a Deus. O texto também pode ecoar Zacarias 9.14, com a figura do Senhor e suas flechas que reluzem como relâmpagos.[7]
Conclusão
Concluímos que os eleitos não podem ser enganados, no sentido de seguirem os falsos mestres para a perdição. Nossa interpretação discorda da interpretação arminiana, por não considerar não somente o contexto imediato, mas também o restante da teologia do Novo Testamento, que claramente ensina que Deus guarda e preserva seus amados filhos.
Excurso: Esboço clausal do texto grego
- Explanação - ἐγερθήσονται γὰρ ψευδόχριστοι καὶ ψευδοπροφῆται
- Verbo - καὶ δώσουσι σημεῖα μεγάλα καὶ τέρατα
- Infinitivo - ὥστε πλανῆσαι
- Questão indireta - εἰ δυνατόν
- Objeto direto / Cláusula resultante - καὶ τοὺς ἐκλεκτούς
________________
Notas:
[1] D. A. Carson, Perigos da interpretação bíblica, p. 41.
[2] D. A. Carson, O comentário de Mateus, p.584.
[3] Ibid
[4] Nolland John. (2005). Preface. In The Gospel of Matthew: a commentary on the Greek text (p. 979). Grand Rapids, MI; Carlisle: W.B. Eerdmans; Paternoster Press.
[5] William Hendriksen, Mateus, p. 505.
[6] Morris, L. (1992). The Gospel according to Matthew (p. 607). Grand Rapids, MI; Leicester, England: W.B. Eerdmans; Inter-Varsity Press..
[7] Craig L. Blomberg, Mateus, em O comentário do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, eds, D. A. Carson e G. K. Beale, p. 107.
Autor: Willian Orlandi
Divulgação: Bereianos
Postar um comentário
Política de moderação de comentários:
1 - Poste somente o necessário. Se quiser colocar estudos, artigos ou textos grandes, mande para nós por e-mail: bereianos@hotmail.com
2 - A legislação brasileira prevê a possibilidade de se responsabilizar o blogueiro pelo conteúdo do blog, inclusive quanto a comentários; portanto, o autor deste blog reserva a si o direito de não publicar comentários que firam a lei, a ética ou quaisquer outros princípios da boa convivência. Comentários com conteúdo ofensivo não serão publicados, pois debatemos idéias, não pessoas. Discordar não é problema, visto que na maioria das vezes redunda em edificação e aprendizado. Contudo, discorde com educação e respeito.
3 - Comentários de "anônimos" não serão necessariamente postados. Procure sempre colocar seu nome no final de seus comentários (caso não tenha uma conta Google com o seu nome) para que seja garantido o seu direito democrático neste blog. Lembre-se: você é responsável direto pelo que escreve.
4 - A aprovação de seu comentário seguirá os nossos critérios. O Blog Bereianos tem por objetivo à edificação e instrução. Comentários que não seguirem as regras acima e estiver fora do contexto do blog, não serão publicados.
Para mais informações, clique aqui!
Blog Bereianos!