Se conhecemos, então a Trindade existe: um argumento transcendental a partir e para a Trindade

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O argumento a partir e para a Trindade é a peça central do método apologético de Cornelius Van Til.[1] A inspiração para esse argumento é o problema filosófico que iniciou-se nos pré-socráticos[2], chamado de “problema de um e muitos”. Na visão de Van Til, apenas o teísmo – na verdade, apenas o teísmo cristão, com sua visão trinitária de Deus – pode fornecer uma solução para este problema. O que se segue é uma explicação exemplificada do problema. Com a advertência de que exigirá do leitor paciência e reflexão para entender cada parágrafo antes de passar para o próximo.

Uma característica intrigante da realidade é que ela existe em aspectos de unidade e pluralidade: por exemplo, João e Maria manifestam a unidade em virtude do fato de serem humanos e de pluralidade em virtude do fato de que não são os mesmos humanos, mas duas pessoas distintas. Além disso, para ter conhecimento de João, preciso ser capaz (pelo menos em princípio) de compreender tanto o que o unifica com outras coisas no mundo como o que o distingue dessas outras coisas. Se, em princípio, não posso compreender o que distingue João de outras coisas, por que qualquer conhecimento que eu possuir de João seja considerado realmente conhecimento de João, ao invés de Maria ou qualquer outra coisa? E se, em princípio, eu não posso nem mesmo entender o que unifica João com outras coisas (por exemplo, que ele tem qualidades que não são somente dele, mas podem ser exemplificadas[3] por outras coisas, como Maria), por que eu deveria pensar possuir qualquer informação significativa sobre ele?

Segue-se como um princípio geral que, para ter conhecimento de objetos no mundo, o mundo deve ser tal que sua unidade e pluralidade sejam relacionadas, mas distintas. Por essa razão, as expressões de unidade e pluralidade no mundo devem manifestar-se pela unidade (através de relações comuns) e pluralidade (através de distinções).

ARGUMENTOS CONTRA OS PLURALISTAS

A questão que surgiu na Grécia antiga questiona qual o aspecto da realidade é o final[4]: unidade ou pluralidade? Suponhamos que a pluralidade é final. Segue-se que a realidade, em última análise, consiste em um agregado de coisas que são completamente diferentes e não relacionadas entre si, uma vez que qualquer coisa que sirva para conectá-las equivaleria a um princípio unificador mais final, que por hipótese não existe. Na verdade, é ilusório falarmos de um “agregado” de “coisas”, uma vez que tais termos pressupõem uma unidade subjacente pelo qual as coisas podem ser “agregadas” como instâncias de “coisa”. No entanto, como eu observei em princípio nada pode ser conhecido sobre coisas completamente diferentes e não relacionadas.

Outros problemas podem ser derivados a partir deste princípio de pluralidade final. O pluralista abraça uma visão da realidade como uma esfera do acaso dentro do qual todas as verdades empíricas, racionais e éticas existem em indiferença relativa para com o outro, não há nenhuma coerência ou ligação entre um e outro. Problematicamente, isso nos dá todas as razões para duvidar de nossas capacidades cognitivas para conhecermos algo. Pois que princípio garante que nosso raciocínio é equipado para entender o mundo como ele realmente é, visto que todas as coisas são desconexas, incluindo a minha razão e a realidade? Se mesmo o menor pedaço de realidade fugir a compreensão da razão, haveria uma área de realidade totalmente desconhecida para todos. E ainda, esta área pode ter alguma influência sobre a realidade que parece termos conhecimento. Por isso, não teríamos nem mesmo conhecimento daquilo que pensávamos ter conhecimento. Van Til considera Kant como indubitavelmente correto em assegurar que a mente do homem e os fatos do universo nunca deveriam ter sido separados.[5]

Podemos pensar também que o mundo só é inteligível se houver princípios abstratos imutáveis. Precisamos pressupor, por exemplo, o princípio da não-contradição[6], até para nos comunicarmos. Sem esse princípio, a Trindade poderia existir e não existir, na verdade, até a comunicação seria impossível. Pois quando eu digo que algo é, não significa que não é. O significado pressupõe o princípio imutável da não-contradição. Mas, numa metafísica pluralista, esse princípio é algo evidente por si mesmo como existindo sem ter qualquer relação com a realidade, pois não há nada que unifique os dois. Assim, a realidade está completamente a mercê do acaso[7] e sujeito a contradições. Talvez a única característica confiável da realidade é o fato de estar constantemente flutuando e passando para o seu oposto. Mas um universo que está constantemente e imprevisivelmente mudando pode muito bem passar para a não-existência completamente, no qual cada característica do universo, incluindo a própria mudança, seria perdida.

Na teoria, o pluralista considera os fatos como objetos básicos e mais imediatos do conhecimento. Ele, por sua vez, se considera um recipiente igualmente vazio e indiferente desses fatos. Mas, na prática, esse ponto de vista revela-se auto-destrutivo. Cada tentativa de identificar conscientemente um fato bruto revela a dependência de qualidades universais (unas) – por exemplo, “ele é um homem”, “isto é vermelho”, etc.

ARGUMENTOS CONTRA OS MONISTAS

Suponhamos que a unidade é final. Segue-se que a realidade é fundamentalmente monista[8]: é uma coisa indiferenciada. Porém, em princípio, mais uma vez, nada pode ser conhecimento sobre tal coisa, porque não pode haver algo a partir do qual distingui-lo, incluindo o “nada” – pois nesse caso até a distinção entre ser e não-ser é dissolvida. Além disso, não poderíamos sequer nos conhecer. Pois para conhecermos qualquer coisa significativa sobre si mesmo, é preciso ser capaz de julgar que se exemplificam certas qualidades e não outras; contudo, se a realidade é uma unidade final, não pode haver distinção genuína entre uma qualidade e outra.

Até as ideias racionais[9] do monista, como “homem”, precisariam ser contrastadas e unificadas entre si em fatos concretos diferentes para serem definidas. O que poderia significar conhecer “homem” a parte de uma consciência empírica de que ele é incompatível com “os animais irracionais” e ainda perfeitamente capaz de união com outras qualidades universais diferentes como “gordo” ou “baixo”. Nesse caso, os universais não são autodefinidos, mas têm sua definição mediada por combinações factuais. Somos levados à conclusão de que os universais são ininteligíveis e indistinguíveis quando tomados em si e por si mesmos.

Em ambos os casos, uma vez que a realidade não pode ser conhecida em seu nível mais básico, a compreensão de qualquer coisa dela é obscura. Na verdade, em ambos os casos, como dito, a noção de “coisa” seria ininteligível.

Mas será que qualquer deus poderia criar a realidade de maneira una e múltipla? Pense em um deus unitário. Nada pode ser precisamente predicado de uma divindade estritamente unitária, uma vez que a multiplicidade envolvida na predicação está em desacordo com sua natureza. Uma coisa que não tem nada a distinguir é impensável, mas igualmente impensável é uma coisa que está tão separado de todas as outras coisas que não tem nada em comum com elas. Se tal ser tivesse uma definição negativa de como ela existe em contraste com a criação, ele só demonstraria sua dependência do universo temporal para ter diferenciação e relação que ele não tem em si mesmo. E mesmo que esse deus fosse considerado como tendo distinções internas entre princípios, faculdades, motivos, interesses que são distintos de sua pessoa, ele então seria um efeito de princípios sub-pessoais.[10] Tal deus não pode ser uma deidade verdadeira.

ARGUMENTO TRANSCENDENTAL A PARTIR E PARA A TRINDADE

Por que Van Til pensa que o teísmo cristão escapa desse dilema? Seu pensamento é que, em uma ontologia[11] teísta cristã, nem a unidade nem a pluralidade é final em relação ao outro, mas sim os dois aspectos da realidade são co-finais, na medida em que eles são expressões da tri-unidade de Deus. Deus exibe tanto unidade última quanto pluralidade última: ele é um em “essência” e três em “pessoa”. Além disso, a criação reflete a unidade e a pluralidade de seu Criador de uma forma derivada e análoga.

Assim, o “único” Deus não pode cair no esquecimento como um universal abstrato e indistinto, pois Ele é definido concreta e infinitamente em relação às “três” pessoas. Os “três” também não se rebaixam em particulares irracionais que evitam a definição, pois são exaustivamente definidos pela dinâmica trinitária. Nada, então, ficaria fora da compreensão pessoal de Deus, incluindo a relação entre Seu ser tríplice e seu autoconhecimento abrangente. Deus seria uma pessoa auto-contido, auto-definida e auto-suficiente.

Dessa maneira, não é que tal esquema crie uma compreensão abrangente do universo possível para nós, mas sim torna possível a Deus, que por sua vez pode nos fornecer uma compreensão parcial e derivada do universo. Em todo o caso, o ponto principal aqui é que somente uma ontologia na qual unidade e pluralidade são co-finais no nível mais fundamental pode permitir o conhecimento.

Se quisermos ter coerência em nossa experiência, deve haver uma correspondência de nossa experiência com a experiência eternamente coerente de Deus. O conhecimento humano, em última análise, repousa sobre a coerência interna dentro da divindade; nosso conhecimento repousa sobre a Trindade ontológica como o seu pressuposto.

A surpreendente conclusão é que até a negação da existência da Trindade, afirma-o. Todo ato de conhecimento ou predicação pressupõe a existência da harmonia absoluta e pessoal da unidade e da pluralidade, dentro do Deus Trino. Negações que a Trindade existe são afirmações de posse de conhecimento e atos de predicação. Portanto, o Deus Triúno existe.[12]

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Notas:
[1]Cornelius Van Til foi o fundador do método apologético chamado pressuposicionalismo. Neste mesmo blog você pode encontrar mais informações sobre essa metodologia em minha autoria.
[2] Os pré-socráticos foram os primeiros filósofos. Movimento que surgiu na Grécia Antiga.
[3] Como, por exemplo, ambos serem uma pessoa. “Exemplificados” é um termo que os filósofos usam para se referir que um universal está instanciado em algum particular.
[4] Por “final” eu quero dizer aquilo que é último ou definitivo, o que tem primazia.
[5] Você pode observar que a visão pluralista de mundo costuma ser o pressuposto dos cientistas contemporâneos que se professam ateus.
[6] Este princípio afirma que algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo e no mesmo sentido.
[7] Esse argumento serve para qualquer outro princípio lógico que tem a utilidade de tornar o mundo inteligível, isto é, entendível para a mente humana.
[8] Monismo afirma a unidade da realidade como um todo.
[9] Por ideias racionais, eu me refiro a tanto universais quanto a princípios lógicos e éticos.
[10] Isto é, ele não é uma pessoa em si mesmo. Mas o resultado de diversas partes juntas que em si mesmo são menores que uma pessoa. A exemplo temos o Exodia do desenho animado Yu-Gi-Oh! que só se torna quem ele é devido a junção de suas partes, e ele é o efeito dessas partes. Mas, novamente, falar de “partes” aqui seria ilusório conforme argumentei em pontos anteriores. Outro artigo será necessário para esclarecer melhor o argumento contra um deus estritamente unitário.
[11] “Ontologia” é o estudo daquilo que existe.
[12] Está é uma versão de um argumento transcendental para a existência de Deus. Esse modo de argumento transcendental busca as condições de possibilidade para a experiência inteligível. E dado que Deus é essa condição, tanto a afirmação quanto a negação de sua existência irá afirmá-lo.

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Sobre o autor: Gabriel Reis é Aspirante ao seminário na 1ª Igreja Presbiteriana do Brasil em Duque de Caxias-RJ. Graduando em filosofia pela UFRJ. Namora a Márcia Dias. Sonha em atuar no campo missionário transcultural junto com sua futura esposa. E fundador da Página Apologética Reformada.
Fonte: Gospel Prime
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