Deus não é seu empregado!
Uma interpretação biblicamente correta dos textos
distorcidos pela “teologia” da Prosperidade
Versão 1.0
Por: Renato N. Fontes (renfontes@gmail.com)
Belo Horizonte, Brasil Junho/2008
Ouvi, meus amados irmãos. Não escolheu Deus os que para o mundo são pobres, para serem ricos em fé e herdeiros do reino que Ele prometeu aos que O amam? Tiago 2:5
Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam nem roubam; porque, onde está o teu tesouro, ali estará também o teu coração. Mateus 6:19-21
Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então é que sou forte. II Coríntios 12:10
Introdução
Este artigo é uma tentativa singela de colocar à disposição das pessoas uma boa e sólida interpretação de várias passagens bíblicas que têm sido, com muita freqüência, deturpadas por pessoas adeptas de uma doutrina que ficou conhecida como “teologia da prosperidade”, “evangelho da prosperidade” ou ainda “teologia da confissão positiva”. Os proponentes dessa doutrina, vários por falta de conhecimento e vários, infelizmente, por má fé e desonestidade, usam vários textos curtos das Escrituras, tirados do seu contexto, e torcem seu significado para fazer com que a mensagem transmitida seja exatamente o oposto do que a Bíblia ensina. Desta forma, essas passagens foram quase todas reunidas aqui e colocadas dentro do seu contexto imediato e também do contexto amplo da revelação bíblica, buscando-se assim seu verdadeiro sentido, aquele que é coerente com a mensagem do Deus que se fez pobre, não para que todos os cristãos usufruíssem de bênçãos materiais, mas para seguirmos os Seus passos e também abrirmos mão do que é nosso por amor aos outros.
A mensagem bíblica, de capa a capa, é de doação, de entrega, de amor, aquele amor que, conforme I Co 13, não busca os seus próprios interesses e tem sua maior expressão no ato dar a vida pelos outros. É verdade que Jesus se importa não só com nosso espírito mas também com todo o ser humano, integralmente. Por outro lado, nossa atitude frente a isso faz toda a diferença: baseado nessa verdade, vamos buscar benefícios para nós, como fazem os proponentes da teologia da prosperidade, ou será que isso nos fará ajudar o nosso próximo em primeiro lugar, como Jesus declara em Mt 25, quando diz, “tive fome, e me destes de comer, tive sede e me destes de beber”?
Meu desejo é que este texto abra os olhos de muitos, como um dia os meus também foram abertos! Se você, leitor, congrega em uma igreja onde se ensina essa doutrina, aconselho fortemente que tome uma atitude e pare de dar seus dízimos e contribuições para líderes que acreditam que têm o direito de “prosperar” às suas custas. Um fato muito curioso e fácil de notar é que quase todos os líderes que pregam essa doutrina de fato ficam ricos, porém suas ovelhas quase sempre continuam com o mesmo padrão de vida e nunca “prosperam” materialmente. Quando, entretanto, alguém acena com a possibilidade de parar de contribuir com a riqueza desses líderes, eles usam de intimidação e ameaçam até mesmo com a perda de salvação. É hora de dar um basta, isso é escravidão – o conhecimento da verdade liberta (Jo 8:32). Se algo não liberta, é porque não é verdade!
As citações bíblicas são da Edição Revista e Atualizada no Brasil, da SBB.
Marcos 11:24
Por isso, vos digo que tudo quanto em oração pedirdes, crede que recebestes, e será assim convosco.
Esse versículo deve ser lido em equilíbrio com outro, que é I Jo 5:14: “... esta é a confiança que temos para com ele, que, se pedirmos alguma coisa segundo a sua vontade, ele nos ouve.” João diz que Deus realmente nos dá o que pedimos, contanto que seja a Sua vontade. Deus não é nem o Papai Noel nem muito menos o Gênio da Lâmpada (que chamava Aladim de “amo e senhor”) – não, Ele é o Senhor, e é Sua vontade soberana que determina o que Ele nos dará ou não. A questão é que os defensores da teologia da prosperidade e da confissão positiva dizem que sempre é vontade de Deus curar e dar riqueza, e citam como prova os demais versículos que serão discutidos abaixo. O fato, contudo, é que a vontade de Deus é insondável, oculta em sua maior parte aos seres humanos. Ninguém, exceto por muita presunção, pode dizer que conhece a vontade de Deus em todos os casos. Seus caminhos não são os nossos e Seus pensamentos também não são os nossos (Is 55:8). Seus juízos e Seus caminhos são inescrutáveis e insondáveis, como bem nos lembra Paulo em Romanos 11!
Isaías 53:4, citado em Mateus 8:17 e I Pedro 2:24
... curou todos os que estavam doentes; para que se cumprisse o que fora dito por intermédio do profeta Isaías: Ele mesmo tomou as nossas enfermidades e carregou com as nossas doenças.
... carregando ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos para os pecados, vivamos para a justiça; por suas chagas, fostes sarados.
Os “teólogos” da prosperidade e da confissão positiva dizem que a passagem de Isaías, citada de novo em Mateus e I Pedro, provaria que Deus deve sempre curar, já que Cristo já levou nossas dores e enfermidades.
Tentemos, então, levar esse pensamento às suas conseqüências lógicas. Se Cristo levou todas as nossas dores (o que é fato), e se as implicações plenas disso valessem para nós na presente era (o que questiono aqui), não deveríamos sequer morrer, já que Ele também levou sobre Si a dor da morte.
Também jamais deveria haver perseguição aos cristãos por causa do Evangelho, já que Jesus também levou essa dor sobre Si. Mas, pelo contrário, a realidade da morte é reconhecida em toda a Bíblia como o curso normal da humanidade, maculada como é pelo pecado. Não somente isso, todo tipo de enfermidade deveria ser curada – no entanto, nunca ouvimos relatos de curas de amputados, por exemplo (ainda que ouvíssemos, afinal Deus também é poderoso para curar esse tipo de mal, isso não provaria nada). Assim, essa interpretação de Isaías 53 dada pelos teólogos da prosperidade não se harmoniza com a realidade dos fatos, nem a nossa nem muito menos a dos escritores bíblicos.
Como se deve entender, então, o versículo de Isaías? Basta colocá-lo dentro do contexto de toda a Bíblia, que diz que o homem foi expulso do Éden, e a Árvore da Vida ficou do “outro lado da porta” (até que ponto é uma árvore literal ou simbólica não faz a menor diferença neste caso). Acontece que apenas em Apocalipse, na Nova Jerusalém, é que o homem terá novamente acesso àquela árvore que é “para a cura de todas as nações”. Até então, Deus disse que a terra produziria “cardos e abrolhos”. É num mundo assim que vivemos, e não há distinção entre crentes e incrédulos, afinal Deus manda a chuva sobre justos e injustos (Mt 5:45). Na verdade, até o Novo Testamento menciona doenças que não foram curadas milagrosamente, como o caso de Timóteo (I Tm 5:23), que recebeu do apóstolo Paulo o conselho de tomar vinho por causa das suas “freqüentes enfermidades” no estômago.
Mas, se Is 53:4 só se aplicará plenamente na Nova Jerusalém, por que esse versículo é citado em Mateus, sendo cumprido aqui na terra? O que acontece, neste caso, é que os seres humanos tiveram um "aperitivo" dos efeitos de Isaías 53 quando Jesus esteve fisicamente aqui. É bíblico dizer que o Reino de Deus já chegou (Mt 3:2), porém ainda não na sua plenitude (tanto é que, como já foi dito, nós ainda morremos, ainda pecamos, ainda sentimos dores etc.).
Contudo, quando o Rei esteve fisicamente aqui, pudemos provar um pouco dessa plenitude. Aliás, analisando bem, Jesus ressuscitou apenas umas duas ou três pessoas: quantos mortos havia nos cemitérios judeus na época?
Quantos enfermos havia no tanque de Betesda, onde Jesus provavelmente só curou um? Mateus cita Isaías 53 porque o que possibilitou que as curas de alguns se tornassem reais é que Jesus já pagou pelo nosso pecado. Se Ele não tivesse levado sobre si nossas dores, nenhuma cura teria sido realizada quando Jesus veio. Mas Ele não curou 100% dos enfermos, tampouco ressuscitou 100% dos mortos. Isso só vai acontecer na segunda vinda, quando o Reino de Deus vier na sua plenitude.
E quanto a I Pedro? Coloquemos a citação
João 14:12
Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e outras maiores fará, porque eu vou para junto do Pai.
O versículo acima tem sido citado para dizer que nós podemos e devemos fazer a mesma quantidade e os mesmos milagres que Jesus fez, portanto indo contra a tese de que a presença física de Jesus na terra foi um pré-cumprimento dos benefícios plenos de Is 53:4. Se nós faremos as mesmas obras de Jesus, dizem eles, nada mudou desde que Jesus subiu aos céus.
Cabe aqui um esclarecimento. Depois que Jesus ressuscitou e subiu aos céus, realmente continuaram acontecendo milagres, e creio eu que aconteçam até hoje. Porém, estes não acontecem na mesma intensidade e freqüência que no tempo
Entendamos, portanto, o que representam os milagres na história do cristianismo.
Voltando então a João 14:12, o que significa “farão obras ainda maiores que as que faço”? Primeiro, Jesus não se refere necessariamente aos milagres, uma vez que não usou qualquer uma das três palavras gregas comumente usadas para designá-los no Novo Testamento (traduzidas quase sempre como “sinais, prodígios e maravilhas”, como
João 10:10b
...eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância.
Os teólogos da prosperidade dizem que “vida em abundância” que Jesus veio para que tenhamos é uma vida de riqueza material e saúde. Será? O que pensariam disso os mártires, que, ao contrário da riqueza, ganharam como “prêmio” pela sua fidelidade o sacrifício da própria vida pelo Evangelho? O que pensaria disso aquele missionário que abandonou tudo para viver entre uma tribo selvagem da África, pegou malária e nunca ficou rico, mas por outro lado pregou o Evangelho para aqueles que nunca tinham ouvido falar em Jesus? O que pensaria disso aquela viúva pobre que deu as duas últimas moedas e que, pelo menos pelo relato bíblico, não consta que tenha ficado rica? O que pensaria disso aquela senhora pobre da igreja que tem sempre a casa aberta para receber pessoas em necessidade e sempre tem uma palavra de consolo?
Aliás, o que pensaria Paulo, que passou por inúmeras situações desfavoráveis, até mesmo fome (Fp 4:12)? Será que essas pessoas seriam consideradas como de “vida abundante” pelos teólogos da prosperidade? Por outro lado, será que eles consideram os ricos e poderosos do nosso mundo, incluindo aí criminosos e vários políticos desonestos, como pessoas de “vida abundante”?
Marcos 10:29 (e passagens paralelas: Mateus 19:29 e Lucas 18:29,30)
Tornou Jesus: Em verdade vos digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos por amor de mim e por amor do evangelho, que não receba, já no presente, o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições; e, no mundo por vir, a vida eterna.
Creio que ninguém, em sã consciência, interpreta aquilo tudo literalmente. Se alguém levar o versículo inteiro ao pé da letra, será um pervertido sexual com centenas de filhos (e de mulheres também, se seguirmos a passagem paralela de Lucas!)... Aliás, Jesus falou aquilo para os discípulos. Não consta que Pedro e os demais tenham se tornado milionários depois de abandonar tudo para seguir Jesus – pelo contrário, a maioria deles se tornou mártires. Pedro, por exemplo, continuou vivendo como pescador, e ainda ganhou a "vida abundante" morrendo numa cruz de cabeça pra baixo (se é que é verdade essa história sobre a forma como o apóstolo morreu).
O que Jesus disse é que, se você abrir mão do que tem, vai ganhar uma nova família, vai pertencer à Igreja, ao corpo de Cristo, sua nova família, que representa 100 vezes mais mães, pais, filhos e casas. E, de brinde, ainda vai ganhar perseguições. Aliás, eu me pergunto, por que nenhum desses pregadores da prosperidade cumprem a primeira parte do versículo, que fala sobre abandonar tudo (isso eles só recomendam para as suas ovelhas, que abandonem tudo nas contas bancárias deles), ou ainda o que está um pouco antes, no verso 21, quando Jesus diz ao jovem rico que este deveria vender todos os seus bens e dar o dinheiro aos pobres?
II Coríntios 8:9
... pois conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos.
Citado fora do contexto, esse versículo parece indicar que Jesus se tornou pobre para que todos os cristãos se tornassem ricos. Comecemos a ler o capítulo 8, no entanto, e veremos que Paulo elogia a igreja dos macedônios, que era pobre, e dá um “sabão” na igreja dos coríntios, que era rica. A igreja que era pobre era a mais generosa (o que já contraria a teologia de que ofertar é "semear bens materiais", uma vez que eles eram liberais e continuavam pobres), enquanto que a igreja rica era a mais avarenta.
Paulo então repreende os coríntios, e os exorta a serem como Jesus, que era rico e se fez pobre. Se eles eram ricos, é porque um dia Cristo se fez pobre, e eles deveriam fazer o mesmo em prol do sustento de Paulo e outros apóstolos/missionários, abrindo mão de sua riqueza. Não está escrito ali que Cristo se fez pobre para todos os cristãos fossem ricos (tanto é assim que os macedônios ainda eram pobres, e não era por causa de falta de generosidade).
O que está escrito é que, se os coríntios eram ricos, era por causa da misericórdia de Cristo, que abriu mão da Sua própria riqueza em prol deles.
III João 2
Amado, acima de tudo, faço votos por tua prosperidade e saúde, assim como é próspera a tua alma.
Sabemos que Jesus prometeu perseguições (citando, de novo, Mc 10:29). No entanto, quem tem o costume de escrever "desejo que você seja perseguido”?
Mesmo que seja uma certeza da Palavra de Deus as perseguições por causa do Reino, ninguém as deseja, e isso é perfeitamente natural. Nosso desejo é saúde e prosperidade – agora, se Deus deseja dar isso para nós ou não, cada caso é um caso, e vai depender da soberania divina. Eu desejo saúde para todos os que amo (assim como o apóstolo João desejava a prosperidade do destinatário daquela carta), mas não tenho certeza se essa é a vontade de Deus. Se Ele quiser, na Sua vontade soberana, que alguém morra como mártir ou morra de câncer, essa pessoa tem que dizer como Jó, "o Senhor deu, o Senhor tirou, bendito seja o nome do Senhor". Mas eu posso perfeitamente escrever que o que eu desejo é saúde para quem quer que seja. Foi isso que João escreveu para seu destinatário, mas não necessariamente aquilo era a vontade de Deus. Não faria sentido João ter escrito "desejo perseguições pra você"...
Marcos 11:22,23
Ao que Jesus lhes disse: Tende fé em Deus; porque em verdade vos afirmo que, se alguém disser a este monte: Ergue-te e lança-te no mar, e não duvidar no seu coração, mas crer que se fará o que diz, assim será com ele.
Esse ensinamento de Jesus é usado para justificar o ato de falar com as enfermidades, e ainda o uso de verbos como “decretar” ou “determinar”, que são verbos perfeitamente adequados para estarem na boca do Deus Todo-Poderoso, mas nunca de criaturas finitas e falíveis como nós.
Temos, de fato, alguns exemplos bíblicos de pessoas falando para as coisas ou executando algum ato e algo acontecendo por causa disso. Temos o caso de Jesus, que repreendeu a tempestade e o mar se acalmou, e ainda repreendeu a febre da sogra de Pedro (Lc 4:39). Acontece que Jesus, mesmo assumindo forma humana, nunca deixou de ser Deus. Mesmo assim, temos casos de pessoas comuns fazendo algo semelhante: Moisés colocou o cajado no mar e este se abriu (Nm 14:16,21); recebeu ordem de Deus para apenas falar com a rocha e esta soltaria água (Nm 20:8); Pedro mandou o coxo se levantar e este foi curado (At 3:6), entre outras coisas. Será, então, que isso significa que podemos fazer o mesmo apenas tendo fé? Depende: fé em quê?
O verso 22 diz “tende fé em Deus”. Ter fé em Deus significa acreditar no que Deus falou. Foi Deus que falou com Moisés para falar com a rocha, que colocou no coração de Pedro a certeza de que o coxo seria curado, que falou que abriria o mar... Se Deus falar com certeza que uma montanha sairá do lugar, pode falar com ela que ela sai. Caso contrário, vai tudo continuar como está!
Essa passagem não é, portanto, uma carta branca para sair por aí “decretando” e “determinando” as coisas, mas, antes, é um convite a acreditar em tudo que Deus falar – se Ele falar, vai acontecer. Quem decreta e determina é Deus, nós só podemos proclamar o que Ele já decretou e determinou.
Lucas 6:38ª
... dai, e dar-se-vos-á; boa medida, recalcada, sacudida, transbordante, generosamente vos darão.
Trata-se de mais um texto usado fora do seu contexto, principalmente pelos que gostam de dizer que as contribuições financeiras para a obra de Deus são uma espécie de barganha, que rende bens materiais para quem as dá. O argumento de Jesus começa no verso 27. “Amem os inimigos, ofereçam a outra face, bendigam (mesmo aqueles que os maldizem), dêem a quem pede etc.” No verso 31, Jesus arremata: “façam com os outros o que gostariam que os outros façam com vocês”. Se assim fizermos, se tratarmos bem as pessoas, se dermos nossas coisas para aliviá-las quando tiverem necessidade, a conseqüência lógica é que também elas nos socorrerão quando precisarmos – e nos darão medida plena, recalcada, transbordante... Se, por outro lado, as julgarmos com severidade (verso 37), seremos julgados assim também. É a lei da semeadura e da colheita. Tratem os outros bem e vocês receberão o mesmo em troca – e isso não tem nada a ver com dar ofertas à igreja em troca de bênçãos materiais.
Mateus 16:19, Mateus 12:29 e Marcos 3:27
Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus. Ou como pode alguém entrar na casa do valente e roubar-lhe os bens sem primeiro amarrá-lo? E, então, lhe saqueará a casa. Ninguém pode entrar na casa do valente para roubar-lhe os bens, sem primeiro amarrá-lo; e só então lhe saqueará a casa.
Essas passagens são usadas para justificar a expressão “tá amarrado em nome de Jesus”, ou qualquer outro ritual para “amarrar” os demônios (em algumas versões em inglês “ligar”, em Mateus 16, é “bind”, ou seja, “amarrar”).
Também são usadas para justificar doutrinariamente uma suposta “legalidade” que o diabo e os demônios teriam para agir. Em outras palavras, na teologia da prosperidade e da confissão positiva, quem dá poder para os demônios agirem (ou tira esse poder) são as pessoas e não Deus. Deus só observaria, passivo, as atitudes das pessoas, que neste caso dão ou tiram o poder para que os seres espirituais ajam. A soberania de Deus, assim, se torna um mero detalhe, e Deus, de supremo controlador e sustentador de todas as coisas, passa para o posto de mero expectador, sendo constantemente ameaçado pelas forças do mal e precisando constantemente ser defendido por ninguém menos que nós, criaturas com o poder de “amarrar” os demônios...
Primeiramente, é preciso mencionar que a gramática de Mt 16:19 não diz que nós “amarramos” ou “ligamos” na terra e só então se “amarra” ou “liga” algo nos céus, mas exatamente o contrário. O tempo verbal grego, literalmente traduzido, é: “tudo que ligardes na terra terá sido ligado no céu”. “Terá sido” implica que primeiro foi ligado no céu, para só então nós ligarmos na terra. Em outras palavras, primeiro no céu, depois na terra, essa é a ordem – como, aliás, qualquer outra coisa que Deus faz: primeiro Deus toma a iniciativa, depois o homem segue o que Ele decretou. Esse entendimento acaba com o orgulho humano, uma vez que tira do homem qualquer possibilidade de mudar a Deus, que por falar nisso é imutável e sem qualquer sombra de variação (Tg 1:17). É verdade que Tiago diz que a oração do justo é eficaz, mas curiosamente o exemplo dado por ele foi o de Elias orando para não chover (Tg 5:17,18).
Quem, afinal, colocou no coração de Elias o desejo de orar para que não chovesse, foi o próprio Elias que convenceu a Deus ou foi Deus que moveu o profeta? Em segundo lugar, vale lembrar que o texto de Mateus não tem absolutamente nada a ver com “amarrar demônios”.
Quanto aos textos sobre “amarrar o valente”, é importante entender que Jesus não estava ensinando táticas para derrotar demônios, mas fazia apenas uma analogia entre um ladrão que invade uma casa e amarra o dono para poder roubar e aquele que expulsava os demônios (no caso, Ele próprio). Jesus havia sido acusado de expulsar demônios por ser o maioral deles, e usou dessa analogia para explicar que não fazia sentido expulsá-los sendo um deles, assim como não fazia sentido invadir uma casa sem amordaçar (ou amarrar) o dono desta. Além do mais, ainda que Jesus estivesse ensinando a amarrar demônios, quem disse que isso se faz gritando uma frase mágica?
Nunca é demais lembrar, também, que Jesus e os apóstolos só expulsaram demônios quando estes se apossavam das pessoas, eles nunca os expulsaram de um determinado lugar, como fazem alguns hoje.
Mateus 13:58 e Marcos 6:5,6
E não fez ali muitos milagres, por causa da incredulidade deles. Não pôde fazer ali nenhum milagre, senão curar uns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos. Admirou-se da incredulidade deles.
Segundo os proponentes da teologia da prosperidade e da confissão positiva, o poder de Jesus está limitado pela nossa fé. Quanto mais fé tivermos, dizem eles, mais poder Jesus terá, e a prova seria essas passagens, que dizem que Jesus “não pôde fazer muitos milagres em Nazaré por causa da incredulidade das pessoas”. Mais uma vez, Deus é privado da Sua soberania, já que só pode agir se os seres humanos permitirem.
O sentido dessas passagens, no entanto, fica claro quando entendemos para que serviam os milagres de Jesus. Um dos termos gregos usados para “milagre”, embora não seja o que foi usado nessas passagens, mas é muitas vezes usado indistintamente em outras, significa “sinal”. Um sinal é algo que se faz para que alguém veja e creia, ou seja, é como se fosse uma prova jurídica.
Aliás, esse é o termo preferido pelo evangelista João para se referir aos milagres de Jesus. Em Jo 20:30,31, está escrito: “Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome.”
Em Lucas 4, temos um relato mais detalhado da ida de Jesus a Nazaré e da incredulidade das pessoas de lá, que chegaram ao ponto de tentar matá-lo. A pergunta óbvia que se faz é, por que Jesus iria desperdiçar sinais com pessoas que não estavam dispostas a crer? Não, Jesus não teve seus poderes limitados pela incredulidade do povo, simplesmente não quis fazer sinais se estes não serviriam para nada.
Deuteronômio 28:1-14, Gênesis 39:3, Êxodo 15:26, Josué 1:8, I Crônicas 22:13, II Crônicas 26:5, Salmo 1:3, Salmo 25:13, Salmo 112:1-3 etc.
São as únicas passagens bíblicas ou que prometem prosperidade para quem obedecer ao Senhor ou que relatam que alguém prosperou por causa disso. Não é por acaso que todas elas estão no Antigo Testamento. Na Nova Aliança, não há qualquer promessa de que quem for fiel aos mandamentos de Deus prosperará materialmente ou não estará sujeito às doenças que atingem os demais seres humanos. Assim como, na Velha Aliança, não havia qualquer “promessa”, como há no caso da Nova, de que quem servisse ao Senhor seria perseguido por causa da justiça – mesmo assim, vale lembrar que vários personagens do Antigo Testamento foram perseguidos, como Elias, Daniel e Jeremias.
O fato é que Deus se relaciona com as pessoas por meio de alianças. Estas alianças são feitas conforme o nível de maturidade espiritual na qual a humanidade se encontra. Exemplificando, ninguém trata o filho de 5 anos da mesma forma que trata o que tem 25. Quando o filho pequeno pede uma bala, o pai dá. Quando o filho adulto pede a mesma coisa, geralmente a resposta é “vá trabalhar!”... No Antigo Testamento, Deus tratava as pessoas como um pai trata um filho pequeno: obedeça, seja fiel, que você ganhará muitas recompensas, será feliz, suas colheitas nunca falharão, você será rico, sua mulher nunca será estéril (nem suas vacas), sua saúde será perfeita.
Desobedeça, e os céus não enviarão a chuva, as crias das suas vacas abortarão, seus inimigos o perseguirão... No Novo Testamento, por outro lado, depois que Jesus se humilhou e se esvaziou, tendo se tornado pobre mesmo sendo o criador de tudo e o dono de todo o ouro, Deus passou a tratar a humanidade como um pai que se relaciona com um filho maduro, ou seja, na base do amor e não mais das recompensas. A humanidade já estava madura para entender que deve se relacionar com Deus apenas pelo que Ele é, sem buscar bênçãos materiais e saúde em troca e sem obedecer só pelo medo da punição. Na Nova Aliança, as doenças já não são necessariamente punição pela desobediência, mas muitas vezes podem até ser bênção, já que é em meio à nossa fraqueza que o poder de Deus se aperfeiçoa.
O mais interessante é ver que, ainda na Antiga Aliança, muitos já tinham entendido essa verdade, principalmente no caso dos profetas que foram perseguidos. Notem como é tocante a oração de Habacuque: “ainda que a figueira não floresça, que falte tudo, que todas as colheitas falhem, eu contudo me alegrarei no Senhor” (Hc 3:17,18), ou ainda a forma como Jó, pelo menos no início, reage à perda de tudo: “o Senhor deu, o Senhor tirou, bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1:21). Por mais absurdo que possa parecer, um defensor da teologia da prosperidade uma vez me disse que Jó errou por não buscar a cura...
Salmo 103:3
Ele é quem perdoa as tuas iniqüidades; quem sara as tuas enfermidades.
Davi estava num momento de alegria em que, provavelmente, tinha acabado de ver curado de uma doença, possivelmente a mesma referida nos salmos 51, 32 e 38, por causa do seu pecado. Ele diz à sua própria alma que seja grata ao Senhor, que é quem cura de todas as enfermidades. Só que Ele cura quando e como quer, e ainda assim se quiser. Eu concordo com Davi, Deus cura tudo (inclusive amputações!), mas só quando quer. Quando Ele diz não, eu me contento com o fato de que o poder dEle se aperfeiçoa na minha fraqueza, na minha enfermidade, na minha tristeza. Aliás, quando Paulo diz
Provérbios 18:21
A morte e a vida estão no poder da língua; o que bem a utiliza come do seu fruto.
Esse texto é usado para justificar muitas coisas, dentre as quais a doutrina das “maldições” e a própria confissão positiva, segundo a qual suas palavras (confissão, no caso) têm algum poder mágico no mundo espiritual.
O livro de Provérbios é um pouco mais complicado quando se trata de colocar passagens no contexto, já que cada provérbio é um dito isolado e não faz parte de uma unidade textual. Por outro lado, existe algo chamado “contexto amplo”, que é a idéia geral do autor ao escrever uma obra, e ainda o estilo literário.
Neste caso, vemos que o livro em questão contém conselhos para a vida prática, discorrendo sobre criação dos filhos, conduta ética, temor de Deus, sabedoria, obediência às autoridades e outras recomendações que, seguidas na nossa vida prática, produzem uma vida coerente e centrada na vontade de Deus. Desta forma, não se trata de um manual de batalha espiritual nem muito menos de um tratado teológico sobre a ação de anjos e demônios, mas é um livro bem “pé no chão”.
Dito isso, podemos entender que o verso em questão trata do uso da língua no nosso quotidiano, e do grande poder que ela tem: com a língua você pode magoar alguém, desfazer uma longa amizade, pode se meter em apuros, principalmente se ofender alguém com mais poder que você, mas também pode manifestar amor, produzir reconciliação, pode evitar até uma guerra.
Quem usa a língua com sabedoria comerá do fruto que essa mesma sabedoria produz, e é isso e nada mais que o verso em questão está dizendo. Em Tiago 3:1-12 temos o mesmo tema novamente, de forma mais elaborada.
I Samuel 24:6 e Salmo 105:15
E disse [Davi] aos seus homens: O SENHOR me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor, isto é, que eu estenda a mão contra ele, pois é o ungido do SENHOR.
Dizendo: Não toqueis nos meus ungidos, nem maltrateis os meus profetas.
Com base nesses dois versículos, criou-se dentro do protestantismo o mesmo sistema sacerdotal católico, no qual há uma classe especial de “ungidos” que estão acima dos demais crentes e, além disso, não podem ser criticados ou questionados, pois afinal não se pode “tocar nos ungidos”. Esses tais se dizem procuradores de Deus, verdadeiros mediadores, como era, por exemplo, Moisés em relação ao resto do povo de Israel. Cito essas passagens aqui, portanto, por serem usadas com freqüência pelos líderes que ensinam a teologia da prosperidade.
Mas, afinal, o que significa “ungidos”? “Ungir” significa “derramar óleo sobre”, e era, na cultura judaica antiga, a forma como os sacerdotes e reis eram iniciados no seu ofício. Em outras palavras, a unção credenciava o indivíduo para ser mediador entre Deus e as outras pessoas. Por esta razão Jesus é chamado de Cristo ou Messias, que são palavras que significam “ungido”. No Novo Testamento, contudo, o termo “unção” só aparece duas vezes, dentro da mesma passagem,
E quanto aos versículos de I Sm 24:6 e Sl 105:15? A primeira passagem fala de Saul, ungido como rei, e a segunda fala dos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, que Deus aqui chama também de ungidos. “Tocar”, “estender a mão contra” e “maltratar”, em ambos os contextos, significa utilizar de violência física e não a crítica ou o questionamento. Não há qualquer legitimidade exegética para transpor essas passagens do seu contexto original e aplicá-las aos líderes da igreja, por mais abençoados que estes supostamente sejam. O leitor pode ficar tranqüilo, o seu líder não é infalível nem intocável, quem crê dessa forma é o catolicismo em relação ao papa. Se o seu líder falar ou ensinar algo que não se harmoniza com as Escrituras, ele deve sim ser confrontado (com respeito e submissão, obviamente, afinal, a não ser que ele seja um usurpador, Deus o colocou como líder) e, se ele tentar usar de intimidação citando as passagens já citadas, desconfie das intenções dele.
Caro leitor, se você gostou (também se não gostou) deste artigo e quiser fazer alguma observação, crítica, correção ou agradecimento, sinta-se encorajado a me escrever. Gostaria muito de saber sua opinião!
Renato (renfontes@gmail.com)
Referências bibliográficas auxiliares
Sobre a teologia da prosperidade:
HANEGRAAFF, Hank. Cristianismo
ROMEIRO, Paulo. Evangélicos em crise: decadência doutrinária na igreja brasileira. São Paulo: Mundo Cristão, 1996.
YANCEY, Philip. Decepcionados com Deus. São Paulo: Mundo Cristão.
Sobre a interpretação bíblica:
FEE, Gordon D; STUART, Douglas. Entendes o que lês? São Paulo: Vida Nova, 1997.
ZUCK, Roy B. A interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 1994.
Obs.: Agradecemos ao irmão Renato Fontes por disponibilizar este artigo ao Blog Bereianos.
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1 comentários:
Dependendo de que lado você está a teologia da prosperidade é válida, mas só se você for o dirigente denominacional. A prosperidade é "deles"!!
ResponderAbraços,
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