Coringa e “A Faca Entrou”: a perigosa atenuação da culpa

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A obra mais falada do cinema nos últimos dias é “Coringa” (Joker). O filme, aguardado com muita expectativa, traz um Joaquin Phoenix candidato ao posto de melhor ator do ano, tenha ou não o reconhecimento da Academia (entenda aqui ganhar o Oscar). E na minha humilde opinião, se o que ele ou outro ator tivesse entregado na atuação, ficasse abaixo do que vemos na tela, talvez o filme nem fosse tão aclamado como vem sendo.

O trabalho do diretor não é ruim. O roteiro é que deixou algumas coisas a desejar. Apesar de dois excelentes plot twists (uma mudança radical e surpreendente da narrativa), o fato do Coringa ter sido planificado como personagem me desagradou. Explico: Personagens planas e esféricas são uma denominação cunhada por E.M. Forster, retiradas da obra Aspectos do Romance. Ao meu ver, o Coringa da mais recente versão cinematográfica é uma personagem plana, unilateral. Arthur Fleck, a pessoa que se torna o arqui-inimigo do Batman, é alguém que apresenta uma inocência e uma fragilidade que nos faz ter muita simpatia por ele. Em boa parte da película vemos o homem com problemas mentais querendo encontrar o seu lugar no mundo. Querendo ser notado. Querendo ser amado. Mas a notabilidade e o amor não vem. O que Arthur Fleck acumula é fracasso, desdém, sofrimento, abandono, traição. Pobre Arthur…

O Coringa interpretado por Phoenix é mais vítima do que vilão. Isso me incomodou. Basicamente o que vemos em cena é que a resposta de Arthur Fleck para todo o mal que sofreu e absorveu é a violência. Justificada por uma vida de constantes abusos, a aparição do Coringa deixa a personagem sem sua vilania clássica. Ora, o Coringa é um psicopata, alguém mal que no universo dos quadrinhos cometeu inúmeras atrocidades. Faltou a este Coringa do cinema ser mais esférico (ainda usando E.M. Forster). Ele até poderia sofrer, ele até poderia ter seus traumas. Mas faltou um indicativo de pura maldade. Alguma coisa que mostrasse que mesmo com os fatores externos, havia algo de perverso em Arthur manifesto desde muito cedo. Nem que fosse arrancar a cabeça de uns bonecos.

Algumas pessoas vão me dizer que todo o enredo está sendo contado na ótica do próprio Coringa. Portanto, nem toda aquela narrativa significa ser verdadeira. Contraponho argumentando que esta é uma interpretação alternativa. O roteiro do filme não traz uma narrativa em primeira pessoa. Ele apresenta a estória. Ele apresenta a origem do vilão. Há, no mínimo, uma dubiedade de intenção ou de interpretação. Só que o que é apresentado na tela é o que o público médio vai entender: Coringa foi uma resposta da vilania social. Gothan, aqui funcionando mais como uma personagem do que como cenário, forjou Arthur.

Vi e ouvi inúmeras pessoas comentando exatamente o que coloquei acima. As pessoas saíram do cinema colocando a responsabilidade do Arthur ter virado o Coringa em tudo e em todos: na sociedade, na mãe, no Thomas Wayne, no apresentador do Talk Show (De Niro está ótimo aqui, por sinal), menos responsabilizando o próprio protagonista pelas suas ações. E aqui eu gostaria de usar a contribuição do Theodore Dalrymple para destacar o como que isto é problemático.

Dalrymple é o pseudônimo de Anthony Daniels. Hoje um aclamado e respeitado ensaísta britânico, mas que é médico psiquiatra de formação e a exerceu por muitos anos. Um dos seus livros mais recentes lançados em português é “A Faca Entrou” (É Realizações, 2018), recheado de histórias reais de assassinos conhecidos por Dalrymple quando ele atuava como clínico geral e psiquiatra numa penitenciária. O título da obra é explicado da seguinte maneira pelo seu autor:

No entanto observei um fenômeno peculiar na penitenciária onde comecei a trabalhar vinte anos atrás — o uso da voz passiva pelos prisioneiros como forma de se distanciar das próprias decisões e persuadir os outros da falta de responsabilidade por suas ações. A princípio, notei o fenômeno ao falar com assassinos que tinham esfaqueado alguém até a morte e, invariavelmente diziam “a faca entrou”, como se a faca tivesse guiado a mão em vez da mão guiar a faca. Um assassino desses pode ter cruzado a cidade levando a faca consigo para confrontar a exata pessoa de quem guardava um sério rancor. Ainda assim, foi a faca que entrou.

O livro do Darlrymple expõe a negação da culpa e a transferência de responsabilidade para fatores externos. Isso tem sido uma mudança de paradigma que vem levando a sociedade a acomodação da violência e contribuído para uma disfuncionalidade que espanta aqueles que dela se apercebem. Uma vida sofrida ou regada por humilhações não dão um aval para crimes serem cometidos. Falando sobre os prisioneiros com quem trabalhou, Darlrymple assume que, em sua maioria, eles “tiveram infâncias terríveis, cheias de crueldade e negligencia”. Só que não existe uma conexão simples ou inescapável que nos faça afirmar categoricamente que uma coisa está ligada a outra. “Em outras palavras, eles decidiram fazer o que fizeram”.

Tornar o sofrimento, os abusos ou as negligências como causas que servem de gatilhos para atos criminosos e/ou violentos é coisa de quem enxerga “lógica no assalto” (Não pegou a referência? Clica aqui). É sandice! Não queria entrar no mérito de jogar o roteiro do filme para ideologia A ou B, pois, de fato, não acredito que o filme tenha abraçado uma ideologia. Mas não dá para negar que há uma enorme fatia no pensamento progressista que gosta de usar desse tipo de atenuante para respaldar atos que para muitos são injustificáveis. Coringa se torna celebrado em Gothan. As pessoas o exaltam. Alguém que era para ser visto como vilão é visto por uns como uma espécie de herói dos desvalidos. Insano? Muito. Só que o que potencializa a insanidade é quando admitimos que ela é real. Quem não viu uma parcela da sociedade celebrar o ato e a pessoa do Adélio Bispo, o homem que tentou matar, o então candidato à Presidência, Jair Bolsonaro? O mesmo foi de herói de um grupo a alguém que não poderia responder por seus atos, tido posteriormente como mentalmente incapaz (Biruta, no polular).

Coringa, ou melhor, Arthur Fleck, tinha problemas mentais, como dito. No filme não fica muito claro qual ou quais, mas sabe-se que ele possuía. Seria o transtorno mental um atenuador para os futuros crimes cometidos? Ao responder ao advogado de defesa de uma mulher acusada de assassinato, e que fora diagnosticada com um certo distúrbio de personalidade, se aquele distúrbio não deveria atenuar a culpa da acusada, Darlrymple nos conta que deu a seguinte resposta: “O senhor está cometendo um erro de lógica. Um homem com câncer no pulmão tem a doença porque fuma; um homem que fuma não tem necessariamente câncer no pulmão”.

Na Sagrada Escritura, aprendemos que o homem é um ser caído. O pecado é uma realidade que afeta a totalidade do ser humano. Jesus nos diz que é do coração que “procedem os maus intentos, homicídios, adultérios, imoralidades, roubos, falsos testemunhos, calúnias, blasfêmias” (Mateus 5.19). Só que a própria Escritura também nos diz que o homem é responsabilizado por seus atos. A narrativa do primeiro homicídio é conhecida, Caim mata seu irmão Abel por inveja. Todavia, antes de cometer tal brutalidade, ele havia sido exortado: “Então o Senhor perguntou a Caim: Por que te iraste? E por que está descaído o teu semblante? Porventura se procederes bem, não se há de levantar o teu semblante? E se não procederes bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo; mas sobre ele tu deves dominar”. (Gênesis 4.6 e 7).

Caim está para Coringa assim como José está para Bruce Wayne. A história de José narra um dos dramas familiares mais conhecidos do conteúdo bíblico (Começa em Gênesis 37). Sofreu bastante e foi capaz de responder de maneira diferente ao que muitos justificariam como sendo uma vingança compreensível. Já o Bruce Wayne, o Batman, sofreu ao ver seus pais morrendo diante de seus olhos — assassinados à sangue frio. Cercado de dinheiro, estava sem sua família. Uma criança sozinha no mundo. O Batman não sucumbiu a vilania “justificável”. Não é mesmo?

Sei que o Batman junto com José do Egito e o Theodore Darlrymple formaram um grupo bem mais estranho do que os componentes da Liga da Justiça e similares. Mas espero que eles lhe ajudem a ver o que eu vi e tenham clareado o meu argumento. Se você ainda não assistiu ao Coringa, assista. O filme pode até não ser tudo isso que falam, no entanto, é um bom filme e lhe fará pensar em muitas coisas. Vale ressaltar que todo e qualquer disparate deste texto (da minha análise como “crítico de cinema de araque”) é de minha inteira responsabilidade.

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Autor: Pr. Thiago Oliveira
Divulgação: Bereianos
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Resposta a Magno Paganelli, sobre “de quem é a Terra Santa”?

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Um pastor evangélico chamado Magno Paganelli escreveu uma crítica à tréplica que escrevi a Colin Chapman, a propósito de seu livro “De quem é a terra santa”.

O autor gasta dois parágrafos para se apresentar e parece muito preocupado em se mostrar como um especialista na área, falando de suas credenciais acadêmicas. Mas, em praticamente todos parágrafos de seu texto, há meias-verdades, erros, distorções, invencionices e imposturas.

Sobre a existência de um país chamado “Palestina”, Paganelli na verdade não respondeu a nenhuma das perguntas que fiz em minha tréplica. Para simplificar: ele poderia informar quando e onde existiu um país árabe chamado Palestina, e quais eram suas fronteiras e sua bandeira antes de 1948? E por que a Jordânia dominou a Cisjordânia e metade de Jerusalém durante 19 anos (1948-1967) e não fundou na época um estado palestino?

E para aqueles que, como Paganelli, estão prontos a descartar rapidamente acusações de judeofobia e antissemitismo por parte dos árabes é bom lembrar a declaração de Ismail Haniyeh, o “primeiro ministro” do Hamas, em comício em Gaza, na presença de 250 mil pessoas, em 2007: “Nós nunca reconheceremos Israel”. O líder do Hamas, Khalid Mashal, acrescentou: “Nós nunca vamos desistir de uma polegada da Palestina”.

Paganelli afirma que o Corpo de Mulas de Sião era um grupo terrorista. Tal afirmação é falsa. Este corpo foi criado em 1915 (e não em 1920, como ele erroneamente afirma), e seu comandante foi o tenente-coronel John Henry Patterson. É considerada a primeira unidade militar israelense, precursora da Legião Judaica, e foi parte da Força Expedicionária Mediterrânea, combatendo na campanha de Galípoli, contra o Império Otomano, de abril de 1915 a janeiro de 1916. A Legião Judaica, criada em 1917 como parte da Força Expedicionária Egípcia, lutou nas batalhas do Vale do Jordão e do Megido, em junho e setembro de 1918, ajudando os ingleses a derrotar os otomanos e alemães. A Legião Judaica foi desmobilizada em 1921.

Paganelli também afirma, erroneamente, que a Haganah (criada em 1920) teria suas origens no Corpo de Mulas de Sião, e seria uma organização terrorista – logo, as Forças de Defesa de Israel (criadas em 1948) teriam sua origem num suposto grupo terrorista. Na verdade, diferente do que ele afirma, a Haganah teve como precursora a Hashomer (fundada em 1909), cuja antecessora havia sido outro grupo de autodefesa, a Bar Giora (fundada em 1907). E Paganelli parece desconhecer que os grupos paramilitares Irgun (criado em 1931) e Lehi (criado em 1940) foram dissidências da Haganah (a título de comparação, a Haganah tinha 20 a 30 mil membros; o Lehi cerca de 300 a 500 membros).

Sobre a horrível explosão do quartel-general do Mandato Britânico da Palestina/Comando da Palestina, no Hotel King David, em 22 de julho de 1946, ele ignora que o Irgun fez várias ligações avisando do ataque, mas os britânicos não as levaram a sério. 91 pessoas foram mortas no ataque, inclusive 17 judeus. A Agência Judaica condenou o que chamou de “crime covarde” perpetrado por um “grupo criminoso”. Após o ocorrido, o Irgun e o Lehi romperam um acordo de cooperação com a Haganah e passaram a atuar separadamente.

Paganelli afirma que Vladimir Jabotinsky, um judeu russo, foi “um ex-terrorista soviético”, mais uma afirmação que não corresponde aos fatos. Jabotinsky, veterano do Corpo de Mulas de Sião e da Legião Judaica, era um firme anti-comunista, e chegou a escrever sobre o comunismo da União Soviética: “Um regime totalitário [que] deve ser mais insuportável para os judeus do que para qualquer outro povo, pois nenhuma outra raça disputou até agora o título dos judeus de primazia em matéria de individualidade e rebeldia”.

Como parece que Paganelli leu meu texto com óbvia má vontade, ele desconhece que Chapman – cujo livro ele não leu – acusa genérica e coletivamente os judeus pelos ataques a Balad al-Shaykh e Deir Yassin. O que fiz foi destacar que estes ataques não foram ataques realizados por todos os judeus, mas por dois grupos paramilitares judaicos, no contexto da luta de Israel por sua independência, em 1948.

Paganelli escreve que afirmar que Israel é uma democracia é “velho mito”, “propaganda enganosa” e “falácia”. Mas no Democracy Index 2018, do The Economist, o Estado de Israel é listado em 30º lugar. Já o Líbano, que ele supõe ser uma democracia exemplar, se encontra em 106º lugar. A Palestina está em 109º e o Egito, elogiado por ele, encontra-se em 127º lugar.

Paganelli ignora que os cristãos egípcios sofrem discriminação e violência que não ocorre em lugar algum em Israel. Desde 2011, centenas de coptas foram assassinados e várias igrejas foram destruídas por muçulmanos. Enquanto isso, em Israel, no vilarejo de Jish, os cristãos arameus estão revivendo a língua aramaica com o apoio da suprema corte de Israel.

E quanto aos cristãos palestinos, que são apenas 2,5% da população palestina (em 1922 eram 9,5%), a causa de seu êxodo não seria apenas o conflito entre Israel e os árabes, mas também a perseguição do Hamas e da Autoridade Palestina. Enquanto isso, os cristãos árabes que vivem em Israel estão entre as pessoas mais cultas no país.

Paganelli afirma que “há estatísticas que dão conta de que mais de 95% do partido comunista soviético chegou a ser formado por judeus”, simplesmente repetindo as mentiras e fantasias propagadas no infame texto antissemita “Os Protocolos dos Sábios de Sião”.

Por fim, num trecho surpreendente, vindo de alguém que se apresenta como especialista na área, Paganelli afirma que “antes de ser aliado dos Estados Unidos (na Guerra de 1967, p. ex.), Israel era aliado da União Soviética e de lá comprava armas, assim como o Egito de Nasser”. 
Imagem: print do blog de Magno Paganelli

Eu gostaria de saber do autor em que fábricas na União Soviética foram construídas as aeronaves Avia S-199 Mezek, Supermarine Spitfire, De Havilland Mosquito, Gloster Meteor, Boeing B-17 Flying Fortress, North American AT-6 Texan, North American P-51 Mustang, Dassault Ouragan e Dassault Mystére?


E em que fábricas da União Soviética foram construídos os carros de combate M-3, M-1, M-50 e M-51 (conhecidas por norte-americanos e britânicos como tanques Sherman), Hotchkiss H39 e AMX-13, os veículos blindados Bren Carrier e M3 Half-track e o automóvel Jeep Willys?

Para aqueles não familiarizados com história militar, entre a Guerra de Independência, em 1948, e a Crise de Suez, em 1956, as forças armadas de Israel receberam equipamento tcheco, inglês, americano e francês, contrabandeado por meio da Tchecoslováquia e, depois, comprado nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália e Suécia. E, na Crise de Suez, Estados Unidos e União Soviética ficaram ao lado do Egito, contra Israel, França e Inglaterra.

De onde Paganelli tirou a informação de que nessa época “Israel era aliado da União Soviética e de lá comprava armas, assim como o Egito”?

Se tal opinião inédita é verdadeira, é o furo historiográfico do século! 

Livros serão reescritos!

Fábricas como a Boeing, a North American, a De Havilland e a Dassault eram da União Soviética!

Que revelação espantosa!

As Forças de Defesa de Israel não sabiam que usavam equipamento da União Soviética!

Uma miragem no deserto!

É bom lembrar que 3.500 voluntários judeus e cristãos de 43 países lutaram ao lado de Israel na Guerra de Independência, em 1948. Destes, 1.000 vieram dos Estados Unidos, 1.000 do Reino Unido, 500 da África do Sul, 500 do Canadá e 30 da Finlândia. Estes foram chamados de Mahal, um acrônimo de “voluntários do exterior”. 123 Mahalniks foram mortos em combate.

Pelo menos, em seu texto Paganelli deixou bem clara sua posição. Só faltou ele afirmar (como ironizou meu amigo, o rabi Yehuda Hochman) “que o Rabino chefe das Forças de Defesa de Israel prepara os pães ázimos da Páscoa com sangue de crianças palestinas”.

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BIBLIOGRAFIA BÁSICA:
Anita Shapira, Israel: uma história (Rio de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2018).
Benny Morris, Um Estado, dois Estados: soluções para o conflito Israel-Palestina (São Paulo: Sêfer, 2014).
Shlomo Aloni, Arab-Israeli Air Wars 1947-1982 (Botley: Osprey, 2001).
John Laffin, The Israeli Army in The Middle East Wars 1948-73 (London: Osprey, 1982).
Samuel Katz, Israeli Elite Units Since 1948 (London: Osprey, 1988).

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Autor: Pr. Franklin Ferreira
Divulgação: Bereianos
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