Dois Reinos, “Dois Amores”

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Esse é um dos reductio ad absurdums com os quais os teonomistas contrapõem seus críticos, particularmente os dispensacionalistas, mas também os proponentes da versão radical dos “dois reinos” (doravante R2R). Gary North chamou essa teologia [dos dois reinos] de “hermenêutica da bestialidade”. Respondendo à crítica de Dan McCartney acerca das sanções do Antigo Testamento, North escreveu:

“Em primeiro lugar, ele [McCartney] ignora a assertiva fundamental de Bahnsen: isto é, uma lei casuística que não foi revogada pelo Novo Testamento ainda se encontra em vigor. McCartney não se importa em mencionar essa tese; antes, assume justamente o oposto: se [uma lei] não é reinvocada, então não está mais em vigor. Denomino isto de “hermenêutica da bestialidade”: Jesus não condenou a bestialidade, nem exigiu a execução do indivíduo e da besta, conforme requeria a Antiga Aliança, de modo que hoje estamos livres para decidir se exaramos, ou não, leis quanto a isso[1].  

McCartney segue uma posição bastante típica da teologia dos dois reinos ao dizer que a ética bíblica se aplica somente no âmbito da igreja, de modo que o cristão não pode utilizá-la como base para a lei civil ou para sanções penais civis:

Conforme notamos, o Novo Testamento não apresenta indicação alguma das sanções legais como sendo aplicáveis a qualquer um, exceto Cristo e, por meio dele, seu povo... Com efeito, existe a possibilidade de punição para pessoas dentro da igreja (2 Coríntios 10:6), todavia, isto não envolve autoridade civil ou aqueles fora da igreja (1 Coríntio 5:12), e sua única forma são os graus variáveis de afastamento da comunhão (ser “cortado” do povo)[2].

Desse modo, para o adepto dos dois reinos, as leis civis do Antigo Testamento talvez possuem aplicabilidade somente aos membros da igreja, mas não àqueles que não são membros; mas ainda assim, as sanções penais veterotestamentárias não são aplicadas. Com efeito, eles não podem aplicá-las, visto que as sanções penais civis são, por definição, uma função do Estado civil – e não da igreja.

A posição de McCartney é, basicamente, a mesma defendida por Michael Horton, que analisei ao criticar sua visão sobre o casamento homossexual. Horton afirma:

Cristãos não deveriam buscar promover doutrinas e práticas distintamente cristãs por meio do legítimo poder coercitivo do Estado.

Essa visão extremada significa em essência que os cristãos não podem defender que valor bíblico algum seja promulgado como lei civil, a não ser que um grupo substancial de pagãos concordem com eles. Doutro modo, estaríamos advogando perspectivas “distintamente cristãs”. (Nota: nem mesmo Lutero e Melâncton foram tão longe. Ambos concordavam que o magistrado civil poderia efetivamente aplicar as leis mosaicas caso assim o desejasse, a fim de manter a paz e a ordem. Não se exige do Estado, mas também não se o proíbe de impor leis mosaicas. Evidentemente, embora seja superior em comparação à visão moderna mais radical, tal visão, em si, sujeita a lei revelada de Deus às determinações do homem).

Essa abordagem fornece aos liberais todo o arsenal que necessitam. No momento em que o cristão utiliza o argumento de Horton (e de McCartney), ele essencialmente está dizendo: “Não posso legislar minha moralidade”. Ainda que concorde que toda legislação é inevitavelmente uma expressão da moralidade de alguém – como creio que Horton o faz –, o cristão, todavia, deve (nessa perspectiva) se recusar a defender sua moralidade cristã caso esta seja impopular para com os descrentes na sociedade.

No entanto, isso neutraliza toda a influência cristã na legislação, mesmo que os cristãos constituam a maioria da população. Na verdade, eu diria: especialmente se constituem a maioria da população, visto que, então, eles poderiam ter uma maior influência política. No entanto, nossos proponentes dos dois reinos afirmam que, mesmo nesse caso acima citado, os cristãos deveriam permanecer em silêncio, a menos que os pagãos concordem com eles. Contudo, e no caso de os pagãos não somente não concordarem, mas, pelo contrário, defenderem práticas extremas e abomináveis? Novamente, os cristãos R2R devem permanecer mudos e sofrer o crescimento e prevalecimento dessa sorte de pecados ao seu redor, os quais, por sua vez, serão consagrados nos códigos da lei civil. E, com efeito, isto é o que de fato sucedeu na terra natal da doutrina dos R2R: a Alemanha.   

A hermenêutica da bestialidade na vida real

Devo admitir: até me deparar com um artigo jornalístico esta semana, não tinha conhecimento que a bestialidade havia sido legalizada na Alemanha desde 1969. E o que é mais chocante – é algo aparentemente popular. De acordo com um ativista que “vive com seu cachorro”, há mais de 100.000 zoófilos na Alemanha. Um grupo de interesse atualmente luta para estabelecer sanções penais sobre o ato: uma multa de €25.000 (R$ 93.000). Talvez o fato não nos surpreenda, mas esse grupo se opõe ao sexo com animais não porque tal prática seja iníqua, pervertida, doentia ou algo assim. Antes, é fruto de uma preocupação para com o “bem-estar animal”.

O Dr. Horton possivelmente ficará orgulhoso desse grupo de oposição, já que este não luta por uma posição “distintamente cristã”, porém, pelo contrário, apresenta um argumento “que pode apelar à consciência dos não-cristãos”. Por outro lado, há supostamente um “lobby” ativo a favor da permanência da bestialidade legalizada. Um “lobbyista” exprobou a emenda restritiva à “legislação de bem-estar animal” argumentando que... (bem, provavelmente tu já adivinhaste) ... é errado alguém impor sua moralidade sobre as demais pessoas por meio da lei civil. Conforme suas palavras: “A simples moralidade não tem lugar na lei”.

O mais ferrenho defensor do R2R não teria dito melhor. É quase como se os liberais e pagãos doentios aprendessem a doutrina dos dois reinos e, então, criassem estratégias para usá-la contra os cristãos. Horton e outros argumentam que, para o cristão, “o amor ao próximo” deve substituir as leis veterotestamentárias como a base a partir da qual os julgamentos acerca das questões civis modernas serão realizados. No entanto, também neste ponto a “zoofilia” está mais do que disposta a altercações. A própria organização do ativista, ZETA (Zoophiles for the Ethical Treatment of Animals, Zoófilos em Prol do Tratamento Ético dos Animais), adota a Regra de Ouro como um de seus “princípios”: “1º. Conceder aos animais a mesma bondade que se gostaria de receber”.

Isto nos faz retornar mais uma vez à necessidade para critérios objetivos para o “amor”, tanto no que diz respeito: 1) às ações que deverão ser consideradas como crimes civis; quanto 2) aqueles crimes civis que deverão ser punidos na sociedade. Nenhuma hermenêutica, a não ser a teonomia, pode responder essas questões objetivamente a partir do ponto de vista da Palavra de Deus. A recusa em consentir à própria possibilidade da teonomia permitiu, e justificou, que as maiores perversões e tiranias governassem no domínio civil desde a introdução das doutrinas do R2R na época da Reforma[3]. Voltaremos a isto num futuro artigo...

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Nota:
[1] Gary North, Westminster’s Confession: The Abandonment of Van Til’s Legacy (Tyler, TX: Institute for Christian Economics, 1991), página 211.
[2] Citado em: Gary North, Westminster’s Confession, página 213.
[3] Não levo em conta aqui as perspectivas precursoras à versão de Lutero, embora praticamente as mesmas objeções pudessem ser levantadas contra a maior parte delas (Nota do Autor).

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Autor: Joel McDurmon
Fonte: American Vision
Tradução: Fabrício Tavares de Moraes
Divulgação: Bereianos
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