Agostinho e o método alegórico de interpretação

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Por Rikison Moura, V.D.M


Agostinho de Hipona (354-430), foi um dos maiores e mais influentes teólogos da igreja cristã. Respeitado tanto por católicos como por protestantes, Agostinho cravou o seu nome de uma vez por todas nos anais da história. Esse homem foi tão importante para os ideais da Reforma Protestante e seus escritos influenciaram de maneira tão profunda os reformadores, que há quem diga que a Reforma Protestante, bem que podia ser chamada de “Reforma agostiniana”.

Sua teologia desenvolveu-se em um período de conturbados e acalorados debates. E enquanto travava verdadeiras batalhas contra os maniqueus, donatistas, Pelágio e tantos outros, verdadeiras pérolas brotaram da pena de Agostinho. Dentre seus escritos mais importantes destacam-se: Confissões, A Trindade, que ele levou 16 dezesseis anos para termina-la, O livre-arbítrio, Cidade de Deus e a Doutrina cristã.

Esse livro, A doutrina cristã, é um manual de hermenêutica e pregação. Aqui, Agostinho estabeleceu princípios importantes de interpretação bíblica. Entre esses princípios destacam-se os seguintes:

1. O intérprete deve possuir fé cristã autêntica.
2. Deve-se ter em alta conta o significado literal e histórico da Escritura.
3. A Escritura tem mais que um significado e portanto o método alegórico é adequado.
4. Há significado nos números bíblicos.
5. O AT é documento cristão porque Cristo está retratado nele do princípio ao fim.
6. Compete ao expositor entender o que o autor pretendia dizer, e não introduzir no texto o significado que ele, expositor, quer lhe dar.
7. O intérprete deve consultar o verdadeiro credo ortodoxo.
8. Um versículo deve ser estudado em seu contexto, e não isolado dos versículos que o cercam.
9. Se o significado de um texto é obscuro, nada na passagem pode constituir-se matéria de fé ortodoxa.
10. O Espírito Santo não toma o lugar do aprendizado necessário para se entender a Escritura. O intérprete deve conhecer hebraico, grego, geografia e outros assuntos.
11. A passagem obscura deve dar preferência à passagem clara.
12. O expositor deve levar em consideração que a revelação é progressiva.[1]

Porém, mesmo estabelecendo esses importantes princípios de interpretação bíblica, muitos dos quais ainda são utilizados hoje em dia, Agostinho não seguiu de perto esses princípios. Na prática, Agostinho renunciou à maioria dos seus princípios e dedicou-se excessivamente à interpretação alegórica. Ele justificou suas interpretações alegóricas recorrendo a 2 Coríntios 3.6  “Porque a letra mata, mas o espírito vivifica”, querendo com isso dizer que uma interpretação literal da Bíblia mata, mas a interpretação alegórica ou espiritual, vivifica. 

Portanto, a influência de Agostinho na história da interpretação bíblica foi mista: na teoria ele sistematizou muitos dos princípios de uma exegese sadia, mas na prática deixou de aplicar esses princípios em seus estudos dedicando-se a alegoria.

Durante muito tempo a interpretação alegórica reinou na igreja. Desde aqueles que sucederam os apóstolos até a Reforma Protestante no século XVI. Nomes como Clemente de Alexandria (c.150-c.215), Orígenes (185?-254?) eram exímios intérpretes alegóricos. Orígenes dava grande importância a 1 Coríntios 2.6-7 (“falamos a sabedoria de Deus em mistério”).

Mas o que é alegoria? E quais são os seus principais problemas?

O termo alegoria procede da combinação de dois termos gregos, allos, isto é, “outro”, e agoreyo, “falar”, ou “proclamar”. Literalmente significa “dizer uma coisa que significa outra”.[2]

Esdras Costa Bentho nos chama a atenção de que como figura literária, a alegoria é uma metáfora estendida e um recurso literário válido e útil; porém, como sistema de interpretação, mutila os textos bíblicos.[3]

O grande problema de usar alegorias como método de interpretação bíblica é que ele não leva em consideração a intenção do autor original. A intenção do autor perde-se de vista e o intérprete introduz no texto as suas próprias palavras. O intérprete alegórico é especulativo, extravagante. Na ânsia de encontrar o sentido espiritual em cada sentença da Escritura, ele perde de vista o contexto histórico e sangra o propósito tencionado pelo autor original, e assim a Bíblia passa a ser interpretada, não pela própria Bíblia, mas pela mente fantasiosa do intérprete.

Hoje em dia, vez por outra, nós vemos alguns pregadores se aventurarem no terreno escorregadio da interpretação alegórica. Um dia desses ouvi um pregador dizer: “Vocês sabem por que razão Davi pegou cinco pedras do ribeiro (1Sm 17.40)? Era porque aquelas cinco pedras apontavam para o nome de Jesus!”. Mas vejam só que problema esse pregador tem em mãos. Ele não levou em consideração que a Bíblia não foi originalmente escrita em português, e o nome Jesus no hebraico é Yeshua e a transliteração grega do hebraico Yeshua é Jesous e em ambos os casos não tem cinco letras como queria o pregador alegórico acima citado.

Com o advento da Reforma Protestante, o eixo hermenêutico e exegético é drasticamente modificado. As fantasiosas interpretações alegóricas são abandonadas e o texto sagrado, que pelos reformadores era levado à sério é explicado de modo fiel. Tanto Lutero como Calvino, mesmo sendo grandes admiradores de Agostinho, não seguiram o método alegórico de interpretação bíblica e adotaram uma hermenêutica clara, direta e literal. Lutero entendia que o método histórico-gramatical era a melhor abordagem para a compreensão correta da Escritura. Ele chamou a interpretação alegórica de “sujeira”, “escória” e “trapos obsoletos”.

O doutor Martinho Lutero advertiu sobre a atração sedutora de espiritualizar o texto bíblico: “Uma alegoria é como uma bela meretriz que acaricia os homens de uma forma impossível de não amá-la”.[4]

Ele sustentava que um bom intérprete deve considerar em sua exegese as condições históricas, a gramática e o contexto. Acreditava que a fé e a iluminação do Espírito eram requisitos indispensáveis ao intérprete da Bíblia.

João Calvino, o maior exegeta da Reforma, considerava a interpretação alegórica como artimanha de Satanás para obscurecer o sentido da Escritura. A sentença predileta de Calvino era: sacra Scriptura sui interpres --- A própria Escritura interpreta a Escritura. Para ele, a tarefa número um do expositor é revelar o pensamento específico do autor sagrado.

“Visto que revelar a mente do autor é a única tarefa do intérprete, ele erra o alvo, ou pelo menos desvia-se de seus limites, à medida que afasta os seus leitores do propósito do autor... É presunção, e quase uma blasfêmia, distorcer o significado das Escrituras, agindo sem o devido cuidado, como se isto fosse algum jogo que estivéssemos jogando. Ainda assim, muitos estudiosos já fizeram isso alguma vez”.[5]

Devemos, mais do que nunca, seguirmos de perto esse princípio hermenêutico reformado. Cientes de que quando a Bíblia fala, Deus fala, e que uma vez sendo o texto bíblico exposto com fidelidade, o povo é instruído e fortificado na fé e Deus é engrandecido e glorificado, pois um compromisso fiel com a Palavra de Deus é um compromisso inabalável com o Deus da Palavra. Que em tempos marcados pelo relativismo, superficialidade e desvios na exposição bíblica, possamos clamar como Lutero: “A minha mente é cativa da Palavra de Deus!”. Que Deus nos ajude a sermos expositores fiéis de Sua Palavra.

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Notas:
[1] Ramm, citado por Henry Virkler, Hermenêutica avançada, (VIDA) p.45
[2] Esdras Costa Bentho, Hermenêutica Fácil e Descomplicada (CPAD) p. 124
[3] Idem
[4] Steven Lawson, A heroica ousadia de Martinho Lutero, (FIEL), p.62
[5] Steven Lawson, A arte expositiva de João Calvino, (FIEL), p.71

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Fonte: Igreja Presbiteriana de Russas
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