A Reforma como Movimento Religioso

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Por Rev. Hermisten Maia


“Nos fins da Idade Média pesava na alma do povo uma tenebrosa melancolia”, constata o holandês Huizinga (1872-1945). [12] Os séculos anteriores a Reforma são descritos como período de grande ansiedade. [13]

Lutero (1483-1546) e as suas famosas angústias espirituais espelhavam “a epítome dos medos e das esperanças de sua época.” [14] Calvino, ainda que não sendo dominado por esse sentimento, refletia uma constatação natural: a fragilidade humana. Sobre os perigos próprios da vida, relaciona:

Incontáveis são os males que cercam a vida humana, males que outras tantas mortes ameaçam. Para que não saiamos fora de nós mesmos: como seja o corpo receptáculo de mil enfermidades e dentro de si, na verdade, contenha inclusas e fomente as causas das doenças, o homem não pode a si próprio mover sem que leve consigo muitas formas de sua própria destruição e, de certo modo, a vida arraste entrelaçada com a morte.

Que outra cousa, pois hajas de dizer, quando nem se esfria, nem sua, sem perigo? Agora, para onde quer que te voltes, as cousas todas que a teu derredor estão não somente não se mostram dignas de confiança, mas até se afiguram abertamente ameaçadoras e parecem intentar morte pronta. Embarca em um navio: um passo distas da morte. Monta um cavalo: no tropeçar de uma pata a tua vida periclita. Anda pelas ruas de uma cidade: quantas são as telhas nos telhados, a tantos perigos estás exposto. Se um instrumento cortante está em tua mão ou de um amigo, manifesto é o detrimento. A quantos animais ferozes vês, armados estão-te a destruição. Ou que te procures encerrarem bem cercado jardim, onde nada senão amenidade se mostre, ai não raro se escondera uma serpente. Tua casa, a incêndio constantemente sujeita, ameaça-te pobreza durante o dia, durante a noite até mesmo sufocação. A tua terra de plantio, como esteja exposta ao granizo, a geada, a seca e a outros flagelos, esterilidade te anuncia e, dela a resultar, a fome. Deixo de referir envenenamentos, emboscadas, assaltos, a violência manifesta, dos quais parte nos assedia em casa, parte nos acompanha ao largo.

Em meio a estas dificuldades, não se deve o homem, porventura, sentir assaz miserável, como quem na vida apenas semivivo, sustenha debilmente o sôfrego e lânguido alento, não menos que se tivesse uma espada perpetuamente a impender-lhe sobre o pescoço? [15]

Não há parte de nossa vida que não se apresse velozmente para a morte. [16]

E o que mais somos nós senão um espelho da morte? [17]

Pascal mais tarde constataria que “Só o homem é miserável” [18] e, ao mesmo tempo grande, porque “ele se conhece miserável.” [19]

No entanto, Calvino não termina o seu argumento numa descrição “existencialista” da vida, mas, na certeza própria de um coração dominado pela Palavra de Deus. Assim, ele conclui falando da “incalculável felicidade da mente piedosa.”[20] “Quando, porém, essa luz da Divina Providência uma vez dealbou ao homem piedoso, já não só está aliviado e libertado da extrema ansiedade e do temor de que era antes oprimido, mas ainda de toda preocupação. Pois assim como, com razão, se arrepia de pavor da sorte, também assim ousa entregar-se a Deus com plena segurança.”[21]

Calvino admite que para qualquer lado que olharmos encontraremos sempre desespero, até que tornemos para Deus, em Quem encontramos estabilidade no meio de um mundo que se corrompe. [22] A Reforma Protestante do século 16 foi um movimento eminentemente religioso [23] e teológico [24] (pelo menos em sua origem); [25] estando ligada a insatisfação espiritual de dezenas de pessoas - que certamente expressavam o sentimento de milhares de outras anônimas - que através dos tempos não encontravam na igreja romana espaço para a manifestação de sua fé nem alimento para as suas necessidades espirituais. As insatisfações não visam criar uma nova igreja mas, sim, tornar a existente mais bíblica. Portanto, a Reforma deve ser vista não como um movimento externo mas, sim, como um movimento interno por parte de “católicos” piedosos [26] - que diga-se de passagem, ao longo dos séculos tinham manifestado a sua insatisfação, quer através do misticismo, [27] quer através de uma proposta mais ousada que desejavam reformar a sua Igreja, revitalizando-a, transformando-a na Igreja dos fieis.

Todavia, não podemos nos esquecer que as mudanças causadas pelo Renascimento e Humanismo contribuíram para ela; afinal, a Reforma ocorreu na história, dentro das categorias tempo e espaço, onde o homem está inserido. Isto não diminui as causas e muito menos o valor intrínseco da Reforma; pelo contrário, vem apenas demonstrar o que a Palavra de Deus ensina e no que creram os reformadores: Deus é o Senhor da história. De fato, o que é a história, senão o palco onde Deus efetiva o Seu Reino?! “A chave da história do mundo é o Reino de Deus.” [28] Toda a relação “natural histórico” não e casual nem cegamente determinada: É dirigida por Deus, o Senhor da História. [29] O propósito de Deus na história como realidade presente faz parte da essência de nossa fé. [30]

A concepção da Reforma como um movimento originariamente religioso não implica na compreensão de que ela esteve restrita a apenas esta esfera da realidade; pelo contrário, entendemos que a Reforma foi um movimento de grande alcance cultural, institucional, social e politico na história da Europa [31] e, posteriormente, em todo o Ocidente. A amplitude da influência da Reforma em diversos setores da vida estava implícita em sua própria constituição: Era impossível alguém abraçar a Reforma apenas no campo da religião e continuar em tudo o mais a ser um homem de uma ética medieval, com a sua perspectiva da realidade e prática intocáveis. A Reforma em sua própria constituição era extremamente revolucionaria: “A Reforma ocupou, e deve continuar a ocupar, um legítimo e significativo lugar na história das ideias,” [32] Não deixa de ser significativo o testemunho de dois estudiosos católicos, Abbagnano e Visalberghi, quando afirmam que a “contribuição fundamental a formação da mentalidade moderna foi a reforma religiosa de Lutero e Calvino.” [33]

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Notas:
[12] Johan Huizinga, O Declínio da Idade Média, São Paulo, Verbo/EDUSP., 1978, p. 31.
[13] Vd. Johan Huizinga, O Declínio da Idade Média, passim. Tillieh denomina a ansiedade predominante nos fins da Idade Média de “ansiedade moral” e “ansiedades da culpa e da condenação.” (Paul Tillich, A Coragem de Ser, pp. 44 e 45). Ver também: Paul Tillich, A Coragem de Ser44ss; Paul Tillich, História do Pensamento Cristão, p. 210ss; Rollo May, O Significado de Ansiedade, Rio de Janeiro, Zahar, 1980, p. 175ss; Timothy George, A Teologia dos Reformadores, p. 25ss; Jean Delumeau , História do Medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. 2' reimpressão, São Paulo, Companhia das Letras, 1993, passim.
[14] Timothy George, A Teologia dos Reformadores, p. 26
[15] João Calvino, As Institutas, 1.17.10. Em outro lugar: “Se considerarmos a enorme quantidade de acidentes aos quais estamos sujeitos, veremos o quão necessários e exercitarmos nossa mente desta maneira.” “Enfermidades de todos os tipos tocam nossos debeis corpos, uma atrás da outra: ou a pestilencia nos enclausura, ou os desastres da guerra nos atormentam.” “Em outra ocasião, as geadas e os granizos destroem nossas colheitas, e ainda somos ameaçados pela escassez e a pobreza.” “Em vista destes acontecimentos, as pessoas maldizem suas vidas, e até o dia em que nasceram; culpam o sol e as estrelas, e ainda censuram e blasfemam a Deus, como se Ele fora cruel e injusto.” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000, p. 43).
[16] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl. 102.25), p. 585.
[17] João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 3, (Sl 102.26), p. 586.
[18] Blaise Pascal, Pensamentos, São Paulo, Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XVI), 1973, V1.399. p. 136.
[19] Blaise Pascal, Pensamentos, V1.397. p. 136. “O homem nao passa de um canico, o mais fraco da natureza, mas e um canico pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água, bastam para mata-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que quem o mata, porque sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele; o universo desconhece tudo isso.” (Blaise Pascal, PensamentosVI.347. p. 127-128).
[20] João Calvino, As Institutas, 1.17.10.
[21] João Calvino, As Institutas, I.I7.11. “ ... o homem crente e fiel e levado a contemplar, mesmo nessas coisas, a clemencia de Deus e Sua bondade paternal. E assim, ainda que se sinta consternado pela morte de todos os que lhe são chegados e veja sua casa deserta, não deixara de bendizer a Deus. Antes se dedicara a meditar: Visto que a graça de Deus habita em sua casa, não a deixara triste e vazia; ainda que as suas vinhas e suas lavouras sejam destruídas pela geada, pela saraiva ou por qualquer outro tipo de tempestade, prevendo-se por isso o perigo de fome, ainda assim ele não perdera o animo e não ficara descontente com Deus. Em vez disso, persistira em sua firme confiança, dizendo em seu coração: Apesar disso tudo, estamos sob a proteção de Deus, somos ‘ovelhas de sua mão’ e ‘rebanho do seu pastoreio’. Por mais grave que seja a improdutividade da terra, Ele sempre nos dará o sustento. Mesmo que o crente padeça enfermidade, não se deixara abater pela dor nem se deixara arrastar pela impaciência e queixar-se de Deus. Ao contrário, considerando a justiça e a bondade do Pai celestial nos castigos que nos ministra, o crente fiel se deixará dominar pela paciência.” [João Calvino, As Institutas, (1541), IV. 17].
[22] João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 3, (Sl. 102.26), p. 586.
[23] Vd. Andre Bieler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1990, pp. 43, 67; Andre Bieler, A Força Oculta dos Protestantes, São Paulo, Editora Cultura Crista, 1999, pp. 49-51; David S. Schaff, Nossa Crença e a de Nossos Pais, 2” ed. São Paulo, Imprensa Metodista, 1964, p. 66; Felipe Fernandez-Armesto & Derek Wilson, Reforma: O Cristianismo e o Mundo 1500-2000, Rio de Janeiro, Record, 1997, p. 11; Timothy George, A Teologia dos Reformadores, p. 20. O filosofo católico Batista Mondin disse: “A Reforma protestante foi um acontecimento essencialmente religioso, mas causou ao mesmo tempo profundas transformações politicas, sociais, econômicas e culturais.” (B. Mondin, Curso de Filosofia, São Paulo, Paulinas, 1981, Vol. II, p. 27). Em outro lugar reafirma: “Como dissemos no início do capitulo, a Reforma protestante foi antes e acima de tudo um acontecimento religioso. Em consequência disso, ela deve ser estudada e julgada segundo critérios religiosos, mais precisamente, segundo os critérios da fé cristã, cujo espirito original a Reforma se propunha restabelecer.” (B. Mondin, Curso de Filosofia, Vol. II, p. 41). O antigo professor de História Eclesiástica da Universidade de Yale, Roland H. Bainton (1894-?), diz que “A Reforma foi acima de tudo um reavivamento da religião.” [Roland H. Bainton, The Reformation o fth e Sixteenth Century, Boston, Massachusetts, Beacon Press. 1985 (Enlarged Editon), p. 3].
[24] Partilho da ideia de Tom Nettles, de que “Tentativas de Reforma através do tratamento de dimensões morais, espirituais e eclesiológicas, ignorando a teologia, sempre falharam.” (Tom Nettles, Um Caminho Melhor: Crescimento de Igreja através de reavivamento e reforma: ln: Michael Horton, org. Religião de Poder, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1998, p. 134).
[25] Vd. A. Bieler, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, pp, 47-48; Andre Bieler, A Força Oculta dos Protestantes, pp. 50-51.
[26] Vd. Emile G. Leonard, O Protestantismo Brasileiro, 2a ed. Rio de Janeiro/Sao Paulo, JUERP/ASTE, 1981, pp. 27-28; Felipe Fernandez-Armesto & Derek Wilson, Reforma: O Cristianismo e o Mundo 1500-2000, pp. 10-11.
[27] Lutero, por exemplo, foi grandemente influenciado por Agostinho (354-430), Mestre Eckhart (c. 1260- c. 1327) (Vd. Paul Tillich, História do Pensamento Cristão, p. 188), Johannes Tauler (c. 1300-1361) - a quem se refere com grande apreço - (Vd, Obras Selecionadas de Martinho Lutero, São Leopodo/Porto Alegre/RS., Sinodal/Concórdia, 1987, Vol. I, p. 98; Ph. J. Spener, Mudança para o Futuro: Pia Desideria, Curitiba, PR./São Bernardo do Campo, SP., Encontrão Editora/Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1996, p. 112ss) e Johannes von Staupitz (c. 1465-1524), este, que antes da Reforma, era seu mestre, amigo e incentivador. (Vd. Philip Schaff, History o fth e Christian Church, Vol. VIII, p. 259).
[28] D. Martyn Lloyd-jones, Do Temor à Fé, Miami, Editora Vida, 1985, p. 23. “As nações podem levantar-se e cair, todavia o plano de Deus prossegue, firme e sem interrupção.” (D. Martyn Lloyd-Jones, /4.v Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo, PES., 1992, pp. 69-70). M Vd. Benjamin Wirt Farley, “A Providência de Deus na Perspectiva Reformada” : ln: Donald K. Mckim, org. Grandes Temas da Tradição Reformada, São Paulo, Pendão Real, 1999, p. 74.
[29] Veja-se A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, São Paulo, CEP. 1989, p. 39ss. “O Reino de Deus e no Novo Testamento, a vida e a meta do mundo que correspondem as intenções do Criador.” (Karl Barth, La Ora tion , Buenos Aires, La Aurora, 1968, p, 51).
[30] Aliás, este e o pressuposto fundamental do jovem brilhante estudioso, Alister McGrath. (Vd. Alister E. McGrath, The Intellectual Origins o fThe European Reformation, p. 4).
[31] Alister E. McGrath, The Intellectual Origins o f The European Refonmition, p. 4.
[32] N. Abbagnano & A. Visalberghi, Historia de la Pedagogia, Novena reimpresion, México, Fondo de Cultura Econômica, 1990, p. 253.
[33] Alister E. McGrath, The Intellectual Origins o f The European Refonmition, p. 4.

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Fonte: COSTA, Hermisten M.P. Raízes da teologia contemporânea – São Paulo: Cultura Cristã, 2004. Págs.: 73-77.
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