O compatibilismo 2/4

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Por Heber Carlos de Campos


O Compatibilismo definido

A ideia da coexistência da soberania divina e da liberdade responsável do seres humanos é regularmente chamada de compatibilismo. Essas duas grandes verdades não se excluem. A Bíblia as ensina e delas não podemos escapar, mesmo que não as entendamos completamente: 

A Verdade de que Deus é soberano 

A soberania de Deus atinge todos os níveis e todas as suas criaturas. Ela é extremamente abrangente nos ensinos da Escritura. Portanto, não é de se estranhar que encontremos nas páginas da Escritura Deus participando claramente nos atos maus dos homens e relacionado com coisas que nunca imaginaríamos que um Deus como o nosso pudesse estar. 

Deus faz vir desgraças sobre as famílias. Assim entendeu com razão Noemi, pois foi uma mulher que sofreu muito da parte do Senhor (Rt 1.13, 20); o profeta Amós faz uma pergunta que, ao mesmo tempo, é uma expressão da sua fé: “Sucederá algum mal à cidade, sem que o Senhor o tenha feito?” (Am 3.6); Mesmo que não seja com alegria no seu coração Deus entristece os filhos dos homens (Lm 3.33); tudo o que acontece no mundo, seja mal ou bem, procede de Deus (Lm 3.37-38); o mesmo Jeremias entendeu muito claramente que os caminhos dos homens, sejam retos ou tortuosos, não são governados nem determinados, nem dirigidos pelos próprios homens (Jr 10.23); um salmista afirmou categoricamente que Deus mudou o coração dos egípcios para que eles odiassem o povo de Israel (Sl 105.25). Deus faz todas as coisas, mesmo as mais espantosas como o mal (Is 45.6-7), afirmou Isaías. Ele endurece o coração das pessoas conforme lhe apraz (Rm 9.18) e pode incliná-lo para o mal, porque o coração das pessoas está nas suas mãos (Pv 21.1). É por isso que Paulo diz que Deus mandou a operação do erro para que os homens não cressem na verdade de Deus (2 Ts 2.11). 

Esse é o Deus das Escrituras Sagradas, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele não é o deus da imaginação das pessoas, nem aquele que é projeção dos próprios homens. Ele possui o controle sobre todas as coisas, porque ele reina sobre o seu universo, faz sempre e inalteravelmente a sua vontade. 

Essa é a primeira grande verdade e uma das mais importantes pressuposições da Escritura — Deus é soberano. 

A verdade de que o homem é um agente livre. 

A segunda grande verdade é que a soberania de Deus nunca exclui ou minimiza a liberdade responsável dos seres racionais. Estas duas verdades andam juntas e nem sempre podemos abarcar a totalidade desta verdade, e também porque pensamos que as duas coisas são excludentes. Nos textos citados logo acima os seres humanos têm participação ativa. Eles não são excluídos porque Deus é soberano. 

Definição de Liberdade de agência 

A liberdade da qual vamos tratar aqui não inclui a idéia comum de escolha contrária, que é comum nos círculos humanistas, semi-pelagianos e arminianos, nem a idéia de uma liberdade de autonomia. A liberdade dos seres humanos que a fé reformada ensina não é fictícia ou ilusória. Ela é real e verdadeira. Ela diz respeito aos atos voluntários que os seres humanos praticam. A liberdade da qual falamos tem a ver com a capacidade que os seres humanos possuem de fazer qualquer coisa que quiserem, de fazer o que lhes agrada, de fazer as coisas pelas quais eles têm predileção. Todavia, nunca eles haverão de fazer nada que seja contrário à sua natureza. Berkhof chama essa liberdade de livre agência, que é a capacidade de fazer qualquer coisa “de acordo com as disposições dominantes da natureza”.

Eles são livres para fazerem as coisas conforme as disposições morais e espirituais dos seus corações. Eles agem obedecendo os seus impulsos interiores. É importante observar que esses impulsos interiores são os impulsos que os levam a participar dos atos que foram iniciados decretivamente por Deus. 

Ilustração de Liberdade de agência 

Sobre a relação entre a soberania de Deus e a liberdade humana vamos falar quando tratarmos da Primeira Causa e das causas secundárias, mas daremos apenas um exemplo como ilustração da ação livres e voluntárias dos homens.

Tome o texto de Atos 4.23-28 e leia-o cuidadosamente. Então, você vai perceber que todas as pessoas mencionadas no verso 27 – Herodes, Pilatos, gentios e povos de Israel fizeram exatamente o que queriam fazer. Alguns detalhes da traição de Cristo foram até planejados cuidadosamente, como é o caso da ação dos fariseus e membros do Sinédrio. Nenhum deles fez coisa alguma contrária à sua natureza. Eles fizeram tudo o que estava de acordo com as disposições dominantes da alma deles. O prazer deles foi cuspir em Jesus, dar-lhe bofetadas, zombar dele, prendê-lo, açoitá-lo, sentenciá-lo à morte e, por fim, serem os instrumentos malignos da sua execução na cruz. Além disso, zombavam de sua divindade, dizendo: “Se tu és Filho de Deus, desce da cruz”. Todas essas coisas foram feitas voluntariamente, sem serem forçados por nada de fora a fazerem o que fizeram. Simplesmente, eles deram ouvidos à sua própria natureza. 

Eu não posso dizer que eles eram absolutamente livres, ou que a liberdade deles era de autonomia, porque eles não podiam fazer nada contrário ao que fizeram. Por que? Porque, ao fazerem voluntariamente o que fizeram, eles estavam cumprindo um decreto divino determinado de antemão. O verso 28 diz que as pessoas mencionadas acima fizeram tudo “o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram”. A liberdade de independência não existe nos seres humanos. Existe, sim, a liberdade de agência, mencionada acima, porque fizeram exatamente o que queriam fazer, mas não possuíam a liberdade de autonomia, justamente porque estavam debaixo de um plano previamente determinado. A soberania divina estava sobre eles e fazendo o que fizeram acabaram cumprindo um decreto divino. 

Relação de Liberdade de Agência com Responsabilidade

Os seres humanos não são eximidos de responsabilidade porque Deus age soberanamente em suas vidas. Deus não anula a responsabilidade dos homens porque ele os criou agentes livres. A responsabilidade de um ser humano está vinculada à sua liberdade de agência. Os seres humanos são considerados culpados pelas transgressões que cometem contra a lei de Deus porque eles fazem todas as coisas conforme eles querem, porque agem voluntariamente como livres-agentes que são, sem serem forçados por nada externamente.  

Veja o exemplo de Davi quando decidiu fazer o censo de Israel. Ele o fez porque quis fazer e, por isso, se tornou responsável por ele, vindo a pedir perdão a Deus por ter feito o que fez e do modo como o fez (2 Sm 24.10). Todavia, ele fez despertado pela soberania de Deus, que se irou contra os israelitas (2 Sm 24.1). Davi fez o quis fazer, foi culpado pelo que fez e pela forma como fez, mas por detrás do seu ato estava a soberania divina. Este é apenas um exemplo de tantos outros que veremos à frente. Todos os exemplos que se seguirão neste livro evidenciam a noção compatibilista que a Escritura apresenta das duas grandes verdades operando juntas: a soberania divina e a liberdade responsável dos seres humanos.
 


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Continua nos próximos dias...

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Fonte: O Ser de Deus e as suas obras: A Providência e a sua realização histórica. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, págs.. 201-203
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