Legalismo

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Por Rev. Ericson Martins


Durante uma viagem missionária no interior do Pará, fomos abordados por um dos membros da equipe que perguntou qual o significado do legalismo? Em resposta, dissemos ser um sistema de crenças falaciosas que convence e induz o homem a cumprir, com esforço excessivo, a lei de Deus ou as leis civis. Depois disso, passamos a pensar por alguns dias sobre outra pergunta: Não é legitimamente bíblico lutar contra a natureza pecaminosa, esforçando-se para viver em fidelidade aos conselhos de Deus?

Embora essa última pergunta pareça defender o legalismo, tal como fora descrito, o propósito deste texto é apresentar a perspectiva bíblica sobre o tema, visando dirimir a confusão que muitas vezes fazemos quanto ao legalismo e a confiança na graça de Deus, afetando negativamente certos aspectos da vida cristã. A salvação não pode ser obtida por obras, mas as obras é uma exigência da fé verdadeira (Tg 2:18).

1. Introdução.

A palavra “legalismo” tem origem no Latim (legalis, relativo à “lei” + ismo como sufixo que dá forma ao substantivo e denota “sistema”). No Antigo Testamento a palavra “lei” é traduzida de towrah (hb.), carregando o sentido de “instrução” e “direção” (cf. Êx 12:48-51). Já no Novo Testamento é traduzida de nomos (gr.) e significa “norma” ou “regra de ação” (BW9, cf. Mt 5:17). Tanto para Grécia quanto para Roma, nomos era o deus Daemon/Gênius, guardião da justiça entre os homens que exigia fidelidade às normas de Zeus/Júpiter (SMITH, p. 174-175). Os leitores neotestamentários estavam familiarizados com o aspecto religiosamente pagão de nomos, mas muito mais com o seu significado legal na cultura teocrática de Israel. A lei de Deus, superior a todas as demais, fora estabelecida para ser cumprida rigorosamente em todas as dimensões da vida (Lv 26:12-18; Dt 11:26-8). 

A lei de Deus reflete a retidão do seu perfeito ser, que é soberanamente santo e justo (Dt 32:4). Ao violar a aliança de Deus, deixando de obedecer a sua lei, o homem se meteu no pecado (Ec 7:29 cf. Gn 3:17-19) e por ele foi corrompido quanto ao seu estado original, passando a viver os efeitos mortificantes da sua relação com o Criador. Desde então, ele tem sido chamado por Deus à santidade, através da obediência fiel aos seus preceitos (Lv 20:7).

A “fidelidade” é, por definição (“fé”), a “firme” ou “estável” confiança em Deus (Js 24:14; Tt 2:10) e, certamente, o seu propósito final encontra-se além do cumprimento externo de determinadas normas. A “justiça”, do mesmo modo, é o direito de cumprir a lei e ser aprovado (At 10:34-35; 1 Jo 3:7). Noé entendeu isso (Gn 6:9 e 7:1; Hb 11:7), bem como Abraão (Gn 26:4-5; Hb 11:8). Moisés reivindicou isso do povo (Dt 4:1-8). E Jesus veio para cumprir justamente toda a lei de Deus, a fim de salvar o homem (Mt 5:17) da condenação por causa do seu pecado.

Jesus disse que provamos amar a Deus quando conhecemos a sua palavra e a obedecemos (Jo 14:21). Ele quer que sejamos fiéis nesse compromisso de aplicar os seus ensinos para a nossa santificação! Entretanto, isso é impossível sem a operação do Espírito Santo, pois é ele quem nos ensina, aplicando eficazmente verdades que nos restauram e nos consolam (Jo 14:26) frente às pressões mundanas do nosso tempo, até que Cristo volte. Sem a obra do Espírito Santo que inicialmente nos revivifica e nos santifica, qualquer que seja o nosso esforço de santificação será improdutivo para a glória de Deus.

2. O legalismo, a salvação e a santificação.

O legalismo é distinto da fidelidade, pois o legalismo tem o seu foco nas normas, enquanto a fidelidade na pessoa que as estabeleceu. O legalismo, nesse sentido, despreza a graça divina e tenta conquistar o mérito de ser aceito por Deus mediante o seu pretenso esforço religioso. Isso pode inicialmente parecer nobre, contudo a Bíblia ensina que boas ações não podem fazer uma pessoa justa, visto que a condição humana está totalmente incapacitada para produzir qualquer justiça que altere a sua condição diante de Deus (Gl 2:16; Ef 2:1; Cl 2:13). A salvação é obra exclusiva da graça de Deus, mediante a fé em Jesus Cristo. Submeter confiantemente a nossa vida à Deus, arrependidos dos nossos pecados, é o que a Bíblia exorta a fazer (At 17:30). Só fazemos isso quando recebemos a graça de Deus pelo mérito de Jesus, e o Espírito Santo nos concede a vida eterna, que é a garantia da salvação. Este é o princípio de uma vida de obediência.

O contrário dessa verdade bíblica ou a sua má compreensão, produz no homem um falso senso de auto-importância por sua suposta fidelidade a Deus (Pv 25:27; Lc 18:11-12; Rm 12:3), convencendo-o de que a salvação, bem como a santificação, é resultado do seu esforço e merecimento (Lc 17:10; Rm 3:9-12). Deus sempre condenou o orgulhoso, o que confia em sua própria bondade e o que espera receber a graça de Deus na base dos seus atos admirados pelos homens (Lc 18:9; Rm 9:30-33). 

Ademais, o legalismo sempre coloca a ênfase no externo em detrimento do interno (1 Sm 15:22). Ele despreza a graça de Deus e concentra os seus esforços para transformar primeiramente o homem exterior, ou seja, os seus comportamentos, os seus vícios, as suas palavras, os seus maus hábitos, as suas amizades, etc (Cl 2:20-23), mas negligencia o fato de que antes o Senhor vê o coração. Jesus confrontou os fariseus com o fato de que, embora eles tenham feito um grande esforço para limpar os seus copos e pratos, se esqueceram de limpar os seus corações, que eram cheios de rapina e perversidade (Lc 11:37-41). Por isso, o legalista tende a julgar os outros (Mt 7:1-5), pois pensa que a sua justiça, que é baseada em méritos pessoais (larga experiência, títulos acadêmicos, poder econômico, cargos elevados na hierarquia do poder) excede a dos demais.

É importante ressaltar que obedecer a Deus jamais tem denotação negativa e deve ser buscada constantemente. E ela, nem sempre, é interpretada como legalismo, pois a genuína evidência da fé verdadeiramente em Jesus se dá através das obras (Tg 2:18). Ao abalar esse alicerce estaríamos estimulando o relaxamento generalizado das responsabilidades pessoais que a própria santificação envolve.

Aquele que reconhece a sua dependência da graça de Deus a todo instante, é humilde em seus relacionamentos e tudo o que faz, faz acima de tudo para a glória do seu Senhor, não para se promover entre os homens.

3. O legalismo e a conduta moral.

Como já exposto, a graça não nos autoriza a pecar, libertando-nos da responsabilidade moral de observar e atender os conselhos de Deus (Rm 6:1-4). 

O conceito de liberdade do mundo gradualmente obscurece a percepção de que a liberdade é cercada de limites. O homem é livre para andar, mas não é livre para voar, porque a sua liberdade não lhe garante fazer tudo o que gostaria. Porque não existe liberdade sem lei. Não é de se estranhar o fato daqueles que exploram a liberdade pessoal, mas respeitando os limites estabelecidos pela família, pela sociedade e, especialmente pela Palavra de Deus, sejam rotulados de “legalistas” ou “fundamentalistas” por aqueles que defendem uma conduta moral sem regras ou preceitos que a oriente. Mas também, mesmo nos círculos cristãos, percebemos que existem legalistas. São pessoas mal resolvidas, guiadas pela obstinação da vaidade e desajustadas entre aquilo que ensinam e o que demonstram em suas próprias vidas. São religiosos pessimistas e incompassivos quando julgam os outros.

Jesus foi a única pessoa que usou a palavra “hipócrita” (hupokrites) no Novo Testamento (20x e apenas nos Sinóticos). Esta palavra tem origem na arte grega, especificamente no teatro, significando “autor”, “dissimulador” ou “jogador” (BW9). No contexto em que Jesus reagiu a uma tensão provocada pelos fariseus, ele respondeu: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque sois semelhantes aos sepulcros caiados, que, por fora, se mostram belos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imundícia!” (Mt 23:27). A ideia transmitida é de uma pessoa que “faz o jogo” da religiosidade pura por motivações impuras e repugnantes. Por isso, a característica que mais denunciava um hipócrita nos dias de Jesus era o excesso de autoconfiança, de orgulho e da pretensa tentativa de promover a aparência de santarrão. Esses, agiam como se fossem um padrão de fidelidade à Deus aos outros, mas estavam bem distantes dessa realidade!

Por que os fariseus podem ser classificados como legalistas?

Primeiro. Eles eram hipócritas. Eles fingiam ser dedicados, consagrados, observadores rigorosos da lei de Deus, altamente disciplinados, e assim demonstravam que eram justos e cheios de piedade; mas as suas motivações eram reprovadas e não viviam, no espírito da lei, o verdadeiro amor a Deus (Mt 23:4-7, 25-28). Eles não foram condenados porque eram demasiadamente zelosos, mas porque eram fingidos, falando e exigindo aquilo que não praticavam (Mc 23:3).

Segundo. Eles davam maior atenção para meios negociáveis de se expor a fé, que aos de caráter inegociáveis na lei (Mt 23:23; Lc 11:42). Jesus referiu-se a essa tendência como coar um mosquito e engolir um camelo em Mateus 23:24. Um legalista é como um fariseu nos dias de Jesus, ele se preocupa mais com picuinhas, com superficialidades e assuntos sem importância... como meios de chamar atenção para si e provar a sua exaltada razão entre os outros. Assim, demonstra-se estar perdido daquilo que é o mais importante no cumprimento da lei, que é a atitude voluntária e consciente da obediência (fé), e não meramente da obrigação em si (obras).

Terceiro. Eles interpretavam mal a lei de Deus (Mt 5:17-48), e foi por isso mesmo que fizeram interpretações falaciosas dela, elevando tradições e preferências humanas para o mesmo nível de autoridade das Escrituras (Mt 15:1-9; Mc 7:1-13). Jesus repreendeu repetidamente os fariseus por esse malícia, a qual sobrecarregava as pessoas com culpas injustificáveis, dívidas impagáveis e sacrifícios intermináveis. E ainda, seus falsos ensinos alimentavam o perverso sistema de arrecadações de recursos pelos serviços prestados no Templo e no Sinédrio. 

Conclusão.

O legalismo, portanto, negligencia a graça de Deus com base em legalidades e tradições despidas da fé e da misericórdia. E, portanto, não pode ser confundido com a obediência requerida por Deus, visto que ela é o princípio preeminente da salvação.

Embora a graça de Deus é, por muitas vezes, mal compreendida biblicamente, dando força para aqueles que estão decididos a pecar, ela produz a firme consciência da obra de Deus a nosso favor, conduzindo-nos a uma vida de obediência à sua Palavra. E quando pecamos, deixando de cumprir o que ela prescreve, podemos contar com o perdão divino e a renovação das forças para a devida perseverança da fé, sabendo que em nenhuma condição poderemos pagar a dívida dos nossos pecados, mas demonstrar o sincero desejo de se ver livre dele observando e obedecendo atentamente os conselhos de Deus, por submissão a ele.

O legalista não aceita isso por estar apegado a formas rigorosas de disciplina religiosa e vaidades. Ele pode ensinar corretamente verdades da Escritura, estando distante como referencial bíblico de vida cristã, por ausência de piedade e humildade.

Acreditamos na necessidade de cuidar, de zelar da nossa caminhada cristã, buscando a santificação das nossas vidas, obedecendo os ensinos da palavra de Deus. Contudo, reconhecemos o perigo de nos cegarmos pelo excesso de autoconfiança, tentando monitorar o nosso próprio pecado a ponto de criar um padrão de moralidade falacioso, e ainda usá-lo como base para julgar os outros por comparações insensíveis e impiedosas. 

Deus não nos julgará com base nas regras que podemos criar para estabelecer a nossa vida cristã, mas com base nas suas e elas são inalcançáveis em sua plenitude e perfeição. O único caminho de sermos justificados diante da lei de Deus é pela graciosa obra de redenção que ele efetivou por seu único Filho, Jesus Cristo. E uma vez redimidos por sua graça, mediante a fé, devemos viver obedientes a ele, mas sempre cientes que ainda sofremos os efeitos do pecado. Por isso, carecemos da constante misericórdia de Deus, assim como as pessoas a nossa volta esperam que também sejamos misericordiosos.

Com amor,

Rev. Ericson Martins

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Referências:
- BibleWorks - Focus on the text (software), v. 9.0: 2011
- Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa (software). Editora Objetiva Ltda., v. 1.0: 200
- SMITH, William. A Smaller Classical Dictionary of Biography, Mythology and Geography [New York: Harper & Brother Publishers,1896], p. 174-175

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Fonte: Reflexões do Cotidiano
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1 comentários:

É interessante ver que a Bíblia demonstra claramente a importância da Lei, mas mostra também o plano de Deus acontecendo através de pessoas quebrando a Lei, como as parteiras hebreias que mentiram, a filha de faraó que desobedeceu o pai e salvou o menino hebreu. Como disse muito bem o texto, nosso apego maior não deve ser à Lei, mas ao Deus que escreveu a Lei.

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