Orare et Labutare: A Hermenêutica Reformada das Escrituras - 1/3

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Por Rev. Paulo R. B. Anglada 


Orare e labutare foram palavras empregadas por Calvino para resumir a sua concepção hermenêutica. Com estes termos ele expressou a necessidade de súplica pela ação iluminadora do Espírito Santo e do estudo diligente do texto e do contexto histórico, como requisitos indispensáveis à interpretação das Escrituras. Com o mesmo propósito, Lutero empregou uma figura: um barco com dois remos, o remo da oração e o remo do estudo. Com um só destes remos, navega-se em círculo, perde-se o rumo, e corre-se o risco de não chegar a lugar algum

Palavras e figuras como estas revelam a consciência que os reformadores tinham do caráter divino-humano das Escrituras e o equilíbrio fundamental que caracteriza a hermenêutica reformada da Palavra de Deus. 

O mesmo não ocorre hoje. O evangelicalismo brasileiro parece estar vivendo dias difíceis. Quando se considera a diversidade doutrinária e prática que, em geral, caracteriza as igrejas evangélicas no nosso país, talvez não seja descabido questionar até mesmo se o termo "evangélico" ainda tem algum sentido, se ainda se presta para distinguir um grupo definido de pessoas dentro da igreja cristã. 

Pode haver muitas razões para tal estado de coisas. Mas, sem dúvida, a rejeição da sã doutrina é uma delas. Na prática, as igrejas evangélicas em geral não têm professado teologia precisa, sistemática, confessional e histórica. Mesmo as denominações mais tradicionais parecem estar se distanciando progressivamente das doutrinas e práticas reformadas que caracterizavam as igrejas protestantes do passado, e pelas quais muitos chegaram a dar suas vidas. 

É convicção deste autor que boa parte desta descaracterização teológica e eclesiástica das igrejas evangélicas no nosso país se explica pelas hermenêuticas deficientes que têm regido a interpretação e pregação da Palavra de Deus. Também é convicção deste autor que a hermenêutica reformada das Escrituras é um modelo de interpretação bíblica capaz de promover, com a graça de Deus, a reforma teológica, litúrgica e eclesiástica que o evangelicalismo brasileiro necessita. Este é o assunto deste artigo. 

I. Delimitação do Assunto 

O termo hermenêutica tem sido empregado em dois sentidos. Historicamente, nos compêndios clássicos de interpretação bíblica, designa a disciplina que, partindo de pressupostos básicos, estuda e sistematiza a teoria da interpretação das Escrituras, enquanto a exegese designa a prática. Neste sentido, o objetivo da hermenêutica é descobrir e sistematizar os princípios e métodos apropriados para a compreensão do sentido que o autor intentou transmitir aos seus leitores originais. 

Mais recentemente, entretanto, estes termos têm sido usados com sentidos diferentes: exegese, para designar o estudo das Escrituras com vistas a descobrir o sentido original pretendido pelo autor, e hermenêutica, no sentido restrito da sua contemporaneidade. Ou seja, a exegese seria uma primeira tarefa histórica pela qual se busca compreender o que os leitores originais entenderam; enquanto que a hermenêutica seria uma tarefa teológica prática e posterior, na qual se busca compreender a relevância da sua mensagem para nós, hoje, no nosso contexto específico.[1]

Neste artigo estes termos são usados no sentido histórico mais comum: hermenêutica, designando a disciplina que estuda e sistematiza os princípios e técnicas, com as quais, partindo de determinados pressupostos, se busca compreender o sentido original do texto bíblico; exegese, designando a prática destes princípios e técnicas; e aplicação, designando a busca da relevância do texto ao nosso contexto específico. Isto é: tendo compreendido qual a mensagem do texto para os seus leitores originais, em que sentido esta mensagem é aplicável aos nossos dias e ao nosso contexto? 

Convém esclarecer também que o termo reformada, não é empregado neste artigo para designar especificamente a hermenêutica dos reformadores. Não se pretende aqui fazer uma descrição específica e detalhada da hermenêutica desenvolvida e praticada por Lutero, Melanchton, Calvino e outros. O termo também não se refere à denominação reformada (ramo da reforma como ficou conhecido especialmente na Europa). O termo hermenêutica reformada, neste trabalho, refere-se a uma corrente ou escola de interpretação bíblica histórica, distinta de outras correntes, fundamentada em pressupostos bíblicos quanto à natureza das Escrituras, e que emprega princípios e métodos específicos. Trata-se de uma escola ou corrente de interpretação que adota o método histórico-gramatical, em contraposição aos métodos intuitivos (da corrente espiritualista) e histórico-crítico (humanista) de interpretação bíblica. 

Com a expressão hermenêutica reformada, quer-se designar neste artigo o modelo de interpretação bíblica defendida e aplicada pelos reformadores, pelos principais símbolos de fé protestantes (inclusive batista)[2], pelos puritanos ingleses, pelos huguenotes franceses, e pelas igrejas evangélicas ortodoxas em geral até os nossos dias. Esta corrente de interpretação poderia ser chamada de hermenêutica protestante ou hermenêutica evangélica. Mas, ao que parece, estes termos já não caracterizam muita coisa — pelo menos no campo da hermenêutica —, pois englobam, sem qualquer distinção, defensores e praticantes de todas as correntes de interpretação bíblicas: desde a corrente espiritualista (intuitiva) até a corrente humanista (histórico-crítica). 

II. Importância do Assunto 

A importância do assunto dificilmente pode ser exagerada, pois a hermenêutica é a base teórica da exegese, que, por sua vez, é o alicerce tanto da teologia (quer bíblica, quer sistemática) como da pregação. O diagrama a seguir ilustra estas relações: 


Parece que, atualmente, pelo menos no Brasil, estas disciplinas têm sido parcialmente relegadas por alguns segmentos evangélicos a um segundo plano. Exegese, doutrina e pregação têm sido substituídas por coisas ‘‘mais práticas’’ (tais como a ação social, o engajamento político, a administração eclesiástica, o evangelismo, a liturgia, as exortações morais, etc.). Quando não se nega a importância da exegese, da doutrina e da pregação, na teoria, nega-se na prática. 

Convém observar, entretanto, que o apóstolo Paulo exorta Timóteo a cuidar ‘‘de si mesmo e da doutrina’’, de modo que possa ser ele mesmo salvo bem como os seus ouvintes (1 Tm 4.16). Ele o admoesta a apresentar-se a Deus ‘‘aprovado, como obreiro que não tem do que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade’’ (2 Tm 2.15). E afirma que devem ‘‘ser considerados merecedores de dobrados honorários (ou honra) os presbíteros que presidem bem, com especialidade os que se afadigam na Palavra e no ensino’’ (1 Tm 5.17). 

Não se pode esquecer de que ‘‘aprouve a Deus salvar aos que crêem, pela loucura da pregação’’ (1 Co 1.21); e de que ‘‘a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo’’ (Rm 10.17). 

A importância da doutrina é vista especialmente nas cartas do apóstolo Paulo e no tratamento que faz da questão da justificação pela fé na carta aos Gálatas. Nem a Igreja de Corinto, com todos os seus problemas morais, foi tão duramente tratada pelo apóstolo quanto as igrejas da Galácia, em função do seu desvio doutrinário. 

A verdade de Deus expressa em sua Palavra é o instrumento empregado pelo Espírito Santo para salvar e santificar. São ‘‘as sagradas letras que podem tornar-te sábio para a salvação pela fé em Cristo Jesus’’, e fazer com que ‘‘o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra’’ (2 Tm 3.15,17). 

Richard Baxter, um dos puritanos mais conhecidos do século XVII, foi o instrumento nas mãos de Deus em um reavivamento na sua cidade. Autor de dezenas de obras, a maioria de cunho prático, usou uma figura para expressar a relação entre a verdade da Palavra e a santidade. Eis suas palavras: 

...as verdades de Deus são os próprios instrumentos da santificação de vocês; essa santificação é o resultado produzido por essas verdades sobre o entendimento e a vontade de vocês. As verdades são o selo e a alma de vocês é a cera; a santidade, é a impressão feita. Se vocês receberem apenas algumas verdades, terão apenas uma impressão parcial... Se vocês as receberem de modo desordenado, a imagem que produzirão nas almas de vocês será igualmente desordenada; como se os membros dos corpos de vocês fossem unidos de modo monstruoso.[3] 

Aí está a importância da hermenêutica: ela é a base teórica da exegese, que por sua vez é o fundamento da teologia e da pregação, das quais depende a saúde espiritual da igreja, e da nossa própria vida. Uma hermenêutica deformada fatalmente resultará em exegese deformada, produzirá teologia e pregação deformadas, e se manifestará tragicamente em igrejas e vidas deformadas. 

III. Necessidade da Hermenêutica 

Todo leitor é um intérprete. Mas ler não implica necessariamente em entender. Quando não há barreiras na compreensão de um texto, a interpretação é automática e inconsciente. Mas isso nem sempre ocorre. De conformidade com a doutrina reformada da clareza ou perspicuidade das Escrituras, a Bíblia é substancialmente, mas não completamente clara. As verdades básicas necessárias à salvação, serviço e vida cristã são evidentes em um ou outro texto, mas nem todos os textos das Escrituras são igualmente claros. 

Por ser um livro divino-humano, inspirado por Deus, mas escrito por homens, admite-se que há dificuldades de ordem espiritual e de ordem humana para a compreensão das Escrituras. O apóstolo Pedro reconheceu essa dificuldade com relação aos escritos do apóstolo Paulo, dizendo que neles ‘‘há certas coisas difíceis de entender...’’ (2 Pe 3.16). 

Isto significa que a compreensão das Escrituras não é necessariamente automática e espontânea. É, sim, o resultado da ação iluminadora do Espírito Santo, por um lado, e por outro, do estudo diligente da língua e do contexto histórico em que foi escrita. 

A. Dificuldades de Ordem Espiritual 

O aspecto espiritual envolvido na interpretação das Escrituras é demonstrado claramente em passagens bíblicas tais como 1 Coríntios 2.14 e 2 Coríntios 4.3-6: 

Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, por que lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. 
...se o nosso evangelho ainda está encoberto, é para os que se perdem que está encoberto, nos quais o deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus... Porque Deus que disse: De trevas resplandecerá luz, ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo. 

Nestes textos o apóstolo Paulo ensina claramente a absoluta incapacidade do homem natural (não regenerado) de compreender a revelação de Deus. A razão desta incapacidade é a cegueira espiritual em que se encontra como resultado da queda do homem do seu estado original, e da ação diabólica. E a cura desta cegueira não é intelectual, mas espiritual. Só o Espírito Santo pode fazer resplandecer a luz do Evangelho da glória de Cristo num coração em trevas. 

Outro texto que demonstra o caráter espiritual envolvido na interpretação das Escrituras é 2 Coríntios 3.14-15. Neste texto o apóstolo Paulo explica que os judeus tinham como que um véu embotando os seus olhos espirituais, de modo que não podiam compreender o significado do que liam, por causa da incredulidade: 

Mas os sentidos deles se embotaram. Pois até ao dia de hoje, quando fazem a leitura da antiga aliança, o mesmo véu permanece, não lhes sendo revelado que em Cristo é removido. Mas até hoje, quando é lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles. 

Como este véu pode ser retirado? Pela conversão, responde o apóstolo no verso seguinte: ‘‘Quando, porém, algum deles se converte ao Senhor, o véu é retirado.’’Na carta aos Efésios, o apóstolo Paulo ensina a mesma coisa com relação aos gentios: 

...não mais andeis como também andam os gentios, na vaidade dos seus próprios pensamentos, obscurecidos de entendimento, alheios à vida de Deus por causa da ignorância em que vivem, pela dureza dos seus corações (Ef 4.17-18). 

A ação iluminadora do Espírito Santo é, portanto, indispensável na interpretação e apreensão do ensino das Escrituras. A erudição piedosa é preciosa e indispensável para a preservação da sã doutrina. Um erudito, por mais bem equipado que esteja hermeneuticamente, desprovido, porém, da ação regeneradora e iluminadora do Espírito, possivelmente não alcançará o sentido da Escritura tanto quanto um crente simples e fiel, mesmo que indouto em métodos e técnicas de interpretação. 

Mesmo o crente precisa da ação iluminadora contínua do Espírito Santo para progredir na compreensão das Escrituras. Seu coração não está embotado como o dos judeus descrentes; nem seu entendimento está obscurecido, como o dos gentios incrédulos. Mas ainda há muito a compreender; e a ação iluminadora do Espírito Santo permanece indispensável. Com esse propósito o apóstolo Paulo orava insistentemente pelos crentes, a fim de que Deus lhes iluminasse mais e mais, para compreenderem mais profundamente a natureza do evangelho e a suprema riqueza da sua graça. Eis um exemplo apenas na carta aos Efésios: 

...não cesso de dar graças por vós, fazendo menção de vós nas minhas orações, para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele, iluminados os olhos do vosso coração, para saberdes qual é a esperança do seu chamamento, qual a riqueza da glória da sua herança nos santos, e qual a suprema grandeza do seu poder para com os que cremos... (Ef 1.16-19). 

Textos como este revelam o papel do Espírito Santo e da fé na compreensão das verdades espirituais. A interpretação e compreensão das Escrituras torna-se essencialmente uma tarefa espiritual — embora não rejeitando habilidades naturais ou técnicas. 

B. Dificuldades Naturais 

Deve-se observar, entretanto, que as Escrituras também revelam, por ensino direto e por inúmeros exemplos, que o coração do homem é mais enganoso do que todas as coisas e desesperadamente corrupto (Jr 17.9), não sendo, portanto, totalmente confiável. Além disso, não existe somente o Espírito da verdade; há também o espírito do erro (1 Jo 4.6). O pai da mentira está sempre pronto a enganar, se possível for, até os eleitos. Logo, o caráter espiritual envolvido na interpretação das Escrituras não elimina, de modo algum, o lado humano, também necessário para a sua correta interpretação e compreensão. Afinal, é pela própria Palavra, e através da Palavra, que o Espírito Santo realiza essa obra iluminadora. 

Por haver sido escrita em línguas humanas, em contextos históricos, sociais, políticos e religiosos específicos, um conhecimento adequado da língua e do contexto histórico também é necessário para uma melhor interpretação e compreensão das Escrituras. Deve-se lembrar também que o ministro da Palavra é aquele que se afadiga no estudo dela (1 Tm 5.17). Logo, para uma interpretação e compreensão adequada das Escrituras, fazem-se necessários requisitos de natureza espiritual, bem como requisitos de natureza intelectual. Ambos são necessários e imprescindíveis. 

Continua...

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