O Que é a Verdade?

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Por Morton H. Smith


Integridade Doutrinária

Nesta era de lassidão geral e afastamento da fé cristã ortodoxa, uma das maiores necessidades é o retorno à integridade doutrinária. Em especial, os homens responsáveis pela pregação sagrada deveriam ser homens que ensinam a verdade, e nada mais do que a verdade da Palavra de Deus. Uma das urgentes necessidades deste mundo de trevas, repleto de falsidade, é a proclamação clara da verdade da Palavra de Deus.

A tentação de Satanás para Eva ocorreu na área da integridade doutrinária. Ele ousou acusar a Deus de falta de integridade. A queda do homem resultou em que a tentação permanente do mundo, da carne e do Diabo é sermos menos do que verdadeiros em nosso viver diário. Como Jesus disse, Ele mesmo é a verdade e a vida; por isso, o evangelho envolve uma proclamação da verdade em um mundo de mentiras. Todos os cristãos devem, mediante o seu testemunho por Cristo, declarar toda a verdade do evangelho.

Todo o conhecimento que podemos encontrar neste mundo foi colocado aqui por Deus, o Criador. Em última análise, toda a verdade está em Deus. Ele é a fonte de toda a verdade que encontramos no mundo que ele criou. Portanto, quando Deus falou a Adão as palavras da aliança de obras, proibindo-o de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, ele afirmou a verdade para Adão. Na tentação dirigida a Eva, Satanás declarou abertamente que isso era falso. Quando Jesus falou com os judeus incrédulos, ele lhes disse que Satanás é o pai da mentira: "Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira" (Jo 8.44). A incredulidade deles se alicerçava no fato de que tinham um coração pecaminoso e não-regenerado.

Em outra ocasião, Jesus falou sobre si mesmo nestes termos: "Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim" (Jo 14.6). Ele estava afirmando que, desde o momento em que Satanás introduziu a mentira, ou a falta de integridade no mundo, e que Adão a abraçou em sua queda, uma das necessidades básicas do mundo é a reintrodução da verdade. E foi exatamente isso que Jesus declarou estava fazendo no mundo. Também disse que só existe um meio de salvação: vir a ele, que é a própria verdade. Jesus testemunho isto a Pilatos: "Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz" (Jo 18.37). Pilatos respondeu cinicamente: "Que é a verdade?", mostrando assim sua natureza não-regenerada.

Nesse mesmo evangelho, lemos que Jesus confiou aos seus discípulos o ministério que recebera do Pai: "Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade. Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. E a favor deles eu me santifico a mim mesmo, para que eles também sejam santificados na verdade" (Jo 17.17-19). Jesus estava rogando que o Pai santificasse os discípulos "na verdade", para que pudessem proclamar a verdade de seu Evangelho neste mundo de falsidade e trevas.

A grande comissão de Jesus, registrada em Mateus 28, define a missão da igreja em dois empreendimentos. Primeiramente, ela deve evangelizar o perdido e, assim, unir os eleitos na igreja. Em segundo, a igreja deve ensinar aos seus membros todas as coisas reveladas nas Escrituras. Qualquer outra coisa que a igreja faça tem de ser subsidiária a essa comissão. Tanto a evangelização como o ensino dos membros exigem que a igreja mantenha integridade doutrinária. Qualquer falha em cumprir isso é desobediência à ordem de Cristo para a igreja.

Se isso é verdade, é óbvio que Deus colocou sobre os ministros da Palavra a absoluta necessidade de serem leais e fiéis à Palavra em sua pregação e ensino. Tornar-se verdadeiro intérprete da Palavra é o dever sublime e celestial de cada homem que prega as Escrituras. Visto que a Palavra foi dada tanto no hebraico como no grego, os pregadores têm de ser capazes de abordar essas línguas de modo tão suficiente, que entendam apropriadamente o texto que desejam proclamar às suas congregações. Em outras palavras, a exigência de integridade no ministério da Palavra exige dos pregadores o compromisso de estudarem a Palavra em suas línguas originais.

Uma parte da verdadeira interpretação da Bíblia inclui o entendimento de como textos específicos se enquadram em todo o sistema de verdade apresentado nas Escrituras. Portanto, o ministro da Palavra precisa estar ciente de todo o sistema de teologia apresentado na Bíblia. O estudo da história da igreja revela que a igreja medieval perdera amplamente a verdade bíblica, visto que substituíra o ensino da Palavra de Deus pela tradição dos homens.

A Reforma produziu um novo compromisso com o princípio de Sola Scriptura. O resultado foi a redescoberta do evangelho pela igreja, à medida que procurava ser reformada pela Palavra de Deus. Um dos benefícios da Reforma foi a destilação dos dogmas da igreja em vários Credos ou Confissões reformados. Foram produzidas cerca de 39 Confissões; e um dos fatos notáveis é que elas mantinham um unidade básica.

A fim de preservar a integridade da pregação nessas igrejas, exigiu-se dos ministros que subscrevessem a Confissão das igrejas em que serviam. Uma forma histórica de subscrição exigida até hoje por algumas denominações é esta: "Você recebe e adota a Confissão de Fé e o Catecismo desta igreja como documentos que contém o sistema de doutrina ensinado nas Escrituras Sagradas?". Em outras palavras, o ministro a ser ordenado está dizendo que a Confissão de Fé e o Catecismo de Westminster afirmam o que ele acredita ser o ensino da Bíblia. Cumpre àqueles que assumem essa subscrição serem fiéis em sua pregação e ensino e proclamarem todo o desígnio de Deus expresso nas Escrituras e interpretado nas Confissões da igreja. Deixar de fazer isso significa corromper a integridade doutrinária que o Senhor espera de seus servos.

Em nossa evangelização, tendemos frequentemente a insistir em uma resposta emocional ao evangelho, sem antes transmitir apropriadamente as grandes doutrinas da fé cristã à pessoa. Precisamos reconhecer que uma resposta correta do coração ou da consciência só pode ser manifestada depois que a verdade do evangelho é comunicada ao pecador. Uma resposta bíblica genuína acontece somente quando a verdade do Evangelho é compreendida. Percebemos, assim, a necessidade de integridade doutrinária por parte de todos os cristãos, que devem ser testemunhas do evangelho para o mundo que nos rodeia.

- Sobre o autor: Dr. Morton H. Smith (in memorian) foi Prof. de Teologia Bíblica e Sistemática no Greenville Presbyterian Theological Seminary, SC

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Fonte: Os Purtianos
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Orare et labutare: A Hermenêutica Reformada das Escrituras - 3/3

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Por Rev. Paulo R. B. Anglada


C. Corrente Reformada 

A corrente reformada de interpretação das Escrituras (objeto específico deste estudo) posiciona-se entre as duas correntes extremas já consideradas. Ela (a corrente reformada) caracteriza-se pelo equilíbrio resultante do reconhecimento do caráter divino-humano das Escrituras. Em função disso, os intérpretes desta corrente reconhecem a necessidade da iluminação do Espírito falando através da própria Palavra, ao mesmo tempo em que admitem a necessidade de interpretação gramatical e histórica das Escrituras. A interpretação reformada rejeita, por um lado, a alegorização indevida das Escrituras e, por outro, repudia uma postura primariamente crítica com relação a elas. 

1. Método Gramático-Histórico 

O método de interpretação adotado e praticado pela corrente reformada ou protestante conservadora é conhecido pelo nome de método gramático-histórico; o método de interpretação honrado pelo tempo, no dizer de M. Lloyd-Jones. Trata-se de um método fundamentado em pressuposições bíblicas quanto à própria natureza das Escrituras, que emprega princípios gerais e métodos lingüísticos e históricos coerentes com o caráter divino-humano da Palavra de Deus. 

2. Precursores: Escola de Antioquia e Agostinho 

Os reformadores não criaram este método de interpretação bíblica do nada. Eles se fundamentaram no próprio ensino bíblico sobre a sua natureza e na prática apostólica. As origens da interpretação reformada também são encontradas na escola de Antioquia da Síria, que pode ser considerada precursora do método gramático-histórico. Seus principais representantes foram Teodoro de Mopsuéstia (†428) e João Crisóstomo (†407), o ‘‘Boca de Ouro’’. Eles rejeitaram tanto o literalismo judeu, como o alegorismo de Alexandria; defendiam uma interpretação literal e histórica das Escrituras; criam na realidade histórica dos eventos descritos no Antigo Testamento; defendiam a unidade das Escrituras e admitiam o desenvolvimento ou progressividade da revelação.[24] 

Agostinho também pode ser considerado precursor do método gramático-histórico de interpretação bíblica. Ele não parece haver sido consistente na aplicação do seu método. De fato, sua distinção de quatro sentidos das Escrituras foi tão influente que prevaleceu por toda a Idade Média, como já foi visto. Apesar disso, ele estabeleceu importantes princípios de interpretação bíblica no seu manual de hermenêutica e pregação, De Doctrina Chistiana. Eis alguns desses princípios: [25]

1. A fé é um pré-requisito fundamental para o intérprete da Palavra de Deus. 
2. Deve-se considerar o sentido literal e histórico do texto. 
3. O Antigo Testamento é um documento cristológico. 
4. O propósito do expositor é descobrir o sentido do texto e não atribuir-lhe sentido. 
5. O credo ortodoxo deve controlar a interpretação das Escrituras. 
6. O texto não deve ser estudado isoladamente, mas no seu contexto bíblico geral. 
7. Se o texto for obscuro, não pode se tornar matéria de fé. As passagens obscuras devem dar lugar às passagens claras. 
8. O Espírito Santo não dispensa o aprendizado das línguas originais, geografia, história, ciências naturais, filosofia, etc.
9. As Escrituras não devem ser interpretadas de modo a se contradizerem. Para isso, deve-se considerar a progressividade da revelação. 

3. Princípios Reformados

Tem sido reconhecido que a reforma teológica e eclesiástica do século XVI foi o resultado de outra reforma: uma reforma hermenêutico-exegética.[26] De fato, a redescoberta das doutrinas bíblicas pelos reformadores e a reforma eclesiástica decorrente foram precedidas por um evidente rompimento com os princípios hermenêuticos e com a prática exegética medieval. 

a. A Única Regra Infalível de Interpretação 

A Reforma Protestante rejeitou veementemente a hermenêutica alegórica medieval, e registrou seu repúdio em alguns dos seus principais símbolos de fé. Eis um exemplo: o parágrafo IX do capítulo I da Confissão de Fé de Westminster (idêntico ao mesmo parágrafo da Confissão de Fé Batista de 1689): 

A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma Escritura; portanto, quando houver questão sobre o verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto da Escritura (sentido que não é múltiplo, mas único), esse texto pode ser estudado e compreendido por outros textos que falem mais claramente. 

Este parágrafo estabelece o princípio reformado fundamental de interpretação bíblica, segundo o qual a única regra infalível de interpretação das Escrituras é a própria Escritura. Ela se auto-interpreta, elucidando, assim, suas passagens mais difíceis. O que estas confissões querem dizer com essa afirmativa é que o sentido de uma passagem obscura não pode ser autoritativamente determinado nem por tradição, nem por decisão eclesiástica, nem por argumento filosófico, nem por intuição espiritual, mas sim, unicamente, por outras partes das Escrituras que expliquem e esclareçam o seu sentido. 

b. Repúdio à Interpretação Alegórica Medieval 

O parágrafo acima, citado da Confissão de Fé, também representa o repúdio dos reformadores ao método de interpretação quádrupla medieval. Em lugar dele, os reformadores ensinavam que cada passagem das Escrituras tem um só sentido, que é literal — a não ser que o próprio contexto ou outro texto das Escrituras requeiram claramente uma interpretação figurada ou metafórica. 

John Colet (c. 1467-1519) foi um dos primeiros reformadores a romper com o método alegórico medieval, ao expor em 1496, em Oxford, as cartas do apóstolo Paulo em seu sentido literal e no seu contexto histórico.[27] Três anos depois, em 1499, ele já sustentava o princípio de que as Escrituras não podem ter senão um único significado: o mais simples.[28] 

Lutero também rejeitou a interpretação alegórica. Defendeu que ‘‘nós devemos nos ater ao sentido simples, puro e natural das palavras, como requerido pela gramática e pelo uso do idioma criado por Deus entre os homens.’’[29] 

Quanto a Calvino, sua aversão à interpretação alegórica era de tal ordem que ele chegou a afirmar ser satânica, por desviar o homem da verdade das Escrituras. ‘‘É uma audácia próxima do sacrilégio’’, escreveu ele, ‘‘usar as Escrituras ao nosso bel-prazer e brincar com elas como com uma bola de tênis, como muitos antes de nós o fizeram.’’[30] 

c. Necessidade de Iluminação Espiritual 

Os reformadores reconheceram a natureza divino-humana das Escrituras, e enfatizaram o papel do Espírito Santo no processo de interpretação da sua mensagem. Para eles, o impedimento maior estava na cegueira espiritual do homem, em função da queda, e não nas Escrituras. Tanto para Lutero, como para Calvino,[31] nenhuma pessoa poderia interpretar corretamente as Escrituras sem a ação iluminadora do Espírito Santo através da própria Palavra. Eis as palavras de Lutero sobre o assunto: 

...a verdade é que ninguém que não possui o Espírito de Deus vê um til sequer do que está na Escritura. Todos os homens têm seus corações obscurecidos, de modo que, mesmo quando discutem e citam tudo o que está na Escritura, não compreendem ou conhecem realmente qualquer assunto dela... O Espírito é necessário para a compreensão de toda a Escritura e cada uma de suas partes.[32] 

d. Interpretação Gramatical e Histórica 

Por outro lado, reconhecendo a natureza histórica das Escrituras, os reformadores defendiam a sua interpretação literal, enfatizando também a importância da gramática e da história na compreensão da sua mensagem.
Melanchton foi um dos responsáveis pela ênfase reformada na exegese gramatical. Em um discurso proferido em 1518 em Wittenberg, ele exortou seus ouvintes a recorrerem às Escrituras nas línguas originais, onde encontrariam Cristo, livre das discordâncias dos teólogos latinos. Lutero ficou tão impressionado com o que ouviu, que passou a assistir às aulas de grego de Melanchton, dedicando-se com afinco ao estudo do grego.[33] 

Mas foi Calvino, sem dúvida, quem melhor praticou a exegese gramatical e histórica. Ele tem sido considerado por muitos o maior intérprete da Reforma e um dos maiores de todas as épocas. A profundidade, lucidez e erudição dos seus comentários, que abrangem praticamente todos os livros da Bíblia,[34] continuam a ser admirados e considerados atuais e raramente igualados.[35] E não se pense que essa é a opinião apenas dos calvinistas (um compreensível exagero presbiteriano deste autor). Mesmo Jacobus Arminius (1560-1609), um dos mais conhecidos opositores das doutrinas de Calvino, reconhecia a excelência dos comentários dele, e chegou a recomendá-los como incomparáveis. Eis suas palavras: 

Depois da leitura das Escrituras..., e mais do que qualquer outra coisa,... eu recomendo a leitura dos Comentários de Calvino... Pois afirmo que na interpretação das Escrituras Calvino é incomparável, e que seus Comentários são mais valiosos do que qualquer coisa que nos tenha sido legada nos escritos dos pais — tanto assim que atribuo a ele um certo espírito de profecia no qual ele se encontra em uma posição distinta acima de outros, acima da maioria, na verdade, acima de todos.[36] 

e. Desenvolvimento do Método Gramático Histórico 

Estes e outros princípios de interpretação praticados pelos reformadores (Lutero, Calvino e demais reformadores alemães, suíços, franceses e ingleses) viriam a ser desenvolvidos e adotados pelo protestantismo ortodoxo em geral desde então,[37] e se tornaram conhecidos pelo nome de método gramático-histórico de interpretação bíblica. 

Foi este o método empregado pelos puritanos no séc. XVII;[38] pelos líderes evangélicos do século XVIII na Europa e América do Norte (tais como George Whitefield e Jonathan Edwards); pelo anglicano J. C. Ryle, pelo batista Charles Spurgeon na Inglaterra e pelos presbiterianos Charles e Alexander Hodge no Seminário de Princeton nos EUA, no século passado; e pelos intérpretes e pregadores protestantes (luteranos, anglicanos, presbiterianos e batistas) ortodoxos deste século. 

Os manuais de hermenêutica de Davidson, Patrick, Imer, Terry, Berkhof, Berkeley, Mickelsen e Ramm pertencem todos a essa escola de interpretação bíblica, bem como os comentários bíblicos de Keil e Delitzsch, Meyer, Matthew Henry, Lange, Alford, Ellicot, Lightfoot, Hodge, Broadus e muitos outros. 

O método gramático-histórico de interpretação bíblica desenvolvido pela corrente reformada é, de fato, a hermenêutica honrada pelo tempo. É um método coerente com a natureza das Escrituras; fundamenta-se em pressuposições teológicas bíblicas; e emprega princípios gerais adequados e métodos lingüísticos e históricos extremamente frutíferos. 

Conclusão

A teologia e a praxis eclesiástica deformadas do evangelicalismo moderno clamam por reforma; clamam por um novo retorno às Escrituras. A corrente espiritualista de interpretação bíblica já foi colocada na balança e achada em falta: as hermenêuticas alegórica, intuitiva e existencialista, por não darem a devida consideração ao caráter humano das Escrituras, abrem espaço para todo tipo de eisegese. O caráter fantasioso destas hermenêuticas acaba desviando a atenção do leitor ou ouvinte do verdadeiro sentido do texto bíblico (aquele que o Espírito Santo intentou transmitir). 

A corrente humanista de interpretação bíblica também já foi colocada na balança e achada em falta: a hermenêutica dos saduceus, dos humanistas renascentistas e da escola crítica, por não darem a devida atenção ao caráter divino das Escrituras, tendem a atribuir à razão a autoridade que pertence à revelação. Este caráter racionalista da hermenêutica humanista induz ao liberalismo teológico que acaba negando a legítima fé reformada. 

A corrente reformada de interpretação bíblica também já foi colocada na balança da história, mas foi aprovada com louvor: o método gramático-histórico fundamentado no próprio ensino bíblico sobre as Escrituras e desenvolvido e aplicado pelos reformadores e seus legítimos herdeiros, por dar a devida atenção tanto ao caráter divino como ao caráter histórico das Escrituras, promoveu as reformas teológicas e eclesiásticas mais profundas já experimentadas pela igreja cristã. 

Durante a Reforma Protestante do século XVI e a reforma puritana do século XVII, por exemplo, muito entulho religioso teve que ser rejeitado. Muitas doutrinas e práticas eclesiásticas acumuladas no decurso dos séculos tiveram que ser abolidas, quando reformadores e puritanos dedicaram-se com labor e oração a perscrutar as Escrituras para ver se as coisas eram de fato assim. A hermenêutica reformada das Escrituras já demonstrou ter a capacidade de revelar a falácia de doutrinas e práticas eclesiásticas ‘‘fundamentadas’’ em interpretações alegóricas, intuitivas, existencialistas e racionalistas. 

Na convicção deste autor, o evangelicalismo brasileiro tem acumulado nos últimos cem anos — especialmente nas últimas décadas — considerável entulho religioso. Não é possível entrar em detalhes aqui. Mas a proliferação de teologias estranhíssimas, práticas litúrgicas inusitadas e condutas eclesiásticas no mínimo excêntricas, já descaracterizaram a fé e o culto reformados. Mesmo denominações historicamente reformadas têm absorvido doutrinas e práticas de culto inconsistentes com o ensino bíblico e com seus símbolos de fé. Esta descaracterização se explica, pelo menos em parte, pelo emprego das hermenêuticas deficientes que estivemos considerando. 

Não é tempo, portanto, de reconsiderarmos os rumos que estamos tomando? De nos desvencilharmos das hermenêuticas alegóricas, intuitivas, existencialistas e racionalistas, e de retornarmos à hermenêutica reformada aprovada pela história? Não é tempo de fazermos da oração uma prática hermenêutica, suplicando pela iluminação do Espírito Santo; e de labutarmos no estudo diligente das Escrituras, dando a devida atenção à língua e às circunstâncias históricas em que foram escritas? 

Orare e labutare é o caminho. Não é um caminho fácil nem mágico. Requer sinceridade e diligência. Talvez não forneça interpretações esplêndidas nem realce a criatividade, imaginação e genialidade do pregador. Mas é o antigo e bom caminho aprovado com louvor pela história. Ele deixa que a verdade de Deus opere e que as Escrituras falem com poder e graça, promovendo profundas reformas teológicas e eclesiásticas.


Notas:
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Como glorificar a Deus na apologética?

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Por Luciano Sena


1. Não busque a sua vitória sobre o oponente, mas busque a Glória do Deus da verdade, ao expor a verdade Dele (Jo 14.6;17.17). Se em algum comportamento, palavra, afirmação ou negação, tocarmos a Glória de Deus, ou desviarmos dela a atenção, perderemos o debate no campo espiritual.

2. Sua preocupação, em segundo lugar, deve ser também com a segurança espiritual de seus irmãos, os demais filhos do Deus da verdade. A apologia deve ser olhada como uma proteção ao rebanho de Cristo (Jo 10.1-16). Pastores que negligenciam a defesa da fé coloca o rebanho sob seus cuidados em uma situação de risco (comp. Is 32.1,2).

3. Não importa também se o seu oponente ficará convencido de sua argumentação se você tem por objetivo a glória de Deus, mas, seu objetivo também é salvá-lo (1 Co 9.22). Visto que isso não é exigido de você, essa não deve ser sua preocupação primordial, mas você deve fazer o melhor para alcançá-lo para Cristo.

4. Sua argumentação deve ser verdadeira e investigada. Tenha certeza do que você apresentará, para que o Deus da Verdade não tenha um apologista acusado de mentira, falsificação ou coisa do tipo. A verdade é poderosa e não precisa de subterfúgios (Jo 8.32). Isso, não garante a conversão ou o reconhecimento do oponente, mas a glória de Deus.

5. Não olhe para ele como um promotor da mentira, mas como uma vítima do engano [Aqui é um ponto que falhei muito!]. Não deixe que seu amor pela verdade extrapole e condene ou ofenda seu oponente, ele só sentirá dor e não o alívio que a Verdade proporciona (Mt 11.28,29,30). Sabemos que a verdade por si mesma causará dores e danos à história herética dele. Ela exigirá um preço a ser pago por ele.

"Porque as armas da nossa milícia não são carnais, mas sim poderosas em Deus para destruição das fortalezas; Destruindo os conselhos, e toda altivez que se levanta contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo o entendimento à obediência de Cristo." II Co 10.4,5

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Adoração trágica

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Por Carl Trueman


O problema com grande parte da adoração cristã contemporânea, seja Católica ou Protestante, não é entretenimento demais, mas é não ser entretenimento o suficiente. A adoração caracterizada por rock animado, comédia stand-up, pessoas lindas e bem apessoadas no centro do palco e um tipo clichê de sentimentalismo barato negligencia uma forma clássica de entretenimento, aquela que nos que, citando o Livro de Oração Comum, “em meio à vida, estamos na morte”.

Ela negligencia a tragédia. Tragédia como forma de arte e entretenimento destaca a morte, e a morte é central para a verdadeira adoração cristã. O elementos litúrgicos mais básicos da fé, o batismo e a Santa Ceia, falam de morte, de sepultamento, de um pacto de sangue, de um corpo despedaçado. Mesmo o clamor de que “Jesus é Senhor!” assume um entendimento de senhorio muito diferente do de César. O senhorio de Cristo é estabelecido por meio de seu sacrifício na cruz, e o de César, por meio de poder.

Talvez seja estranho a alguns caracterizar tragédia como entretenimento, mas a tragédia sempre foi parte vital das obras artísticas do Ocidente desde que Homero relatou sobre Aquiles, começando sobre a morte de seu querido Pátroclo, até sua retirada relutante dos campos de batalha de Tróia. Seres humanos sempre foram atraídos por contos de tragédia, assim como os de comédia, quando o intuito era se elevar acima das rotinas previsíveis da vida diária – em outras palavras, serem entretidos.

De Ésquilo a Tennessee Williams, escritores do gênero têm enriquecidos os teatros. As grandes peças de Shakespeare são suas tragédias. Quem colocaria Charles Dickens acima de Thomas Hardy e Joseph Conrad? A tragédia atraiu a atenção de notáveis pensadores desde a Aristóteles a Hegel e Terry Eagleton.
A adoração cristã deveria imbuir as pessoas da realidade da tragédia da queda do homem e da humanidade. Deveria nos prover uma linguagem que nos permita adorar o Deus da ressurreição enquanto lamentamos o sofrimento e a agonia de nossa parte nesse mundo alienado de seu criador, e deveria, assim, afiar nossa esperança pela única resposta ao grande desafio que iremos enfrentar mais cedo ou mais tarde. Apenas aqueles que aceitam que irão morrer podem começar a olhar com alguma esperança para a ressurreição.

Apesar disso, hoje a tragédia, com algumas poucas exceções, foi excluída do entretenimento popular. Seja o sentimentalismo barato, a pirotecnia dos filmes de ação ou a idiotice banal dos reality shows, o senso trágico está completamente perdido. Isso é mais agravado ainda pela forma trivial com que a linguagem da tragédia agora é usada no vernáculo popular. Como sendo um momento decisivo ou de crise, as palavras tragédia e trágico agora servem para todo tipo de utilidade linguística. Em um mundo onde até mesmo derrotas esportivas são descritas como tragédias, raramente esses termos falam das crises morais catastróficas e quedas heroicas que estão no cerne da grande literatura de tragédia.

Mas a vida humana é, ainda assim, verdadeiramente trágica. A morte permanece uma realidade teimosa, onipresente e inevitável. Apesar de todo anti-essencialismo pós-moderno, de todo o repúdio pela natureza humana, de toda a retórica da auto-criação, a morte eventualmente chega para todos, frustra todos, nivela todos. Não é simplesmente um constructo linguístico ou uma convenção social. Mas mesmo assim, a cultura Ocidental tem, vagarosa mas continuamente, empurrado a morte, a única impressionante inevitabilidade da vida humana, para a zona mais periférica da existência.

Pascal observou esse problema na França do Século XVII, quando viu a obsessão pelo entretenimento como o surgimento do desejo humano caído de ser distraído de qualquer pensamento sobre mortalidade. “Tenho dito com frequência que a causa única da infelicidade do homem é que ele não sabe como permanecer quieto em seu quarto”, dizia. E: “Distração é a única coisa que nos consola de nossas misérias, e ainda assim é em si mesma a maior de nossas misérias”.

Hoje o problema é ainda maior: o entretenimento aparentemente se tornou o objetivo primário de existência das pessoas. Eu duvido que fosse surpreendente para Pascal que o mundo magnificou o tamanho, o alcance e a compreensão da distração. Não o surpreenderia que a morte foi reduzida a pouco mais que um personagem de desenho em incontáveis filmes de ação ou um mero impedimento momentâneo em novelas e seriados. De fato, ele não iria ficar perplexo em saber que a sombria violência da mortalidade não deixa qualquer marca duradoura nos enlutados no surreal mas sedutor mundo do entretenimento popular.

Mas talvez ele seja surpreendido com o fato de que as igrejas têm entusiasticamente endossado esse projeto de distração e dissimulação. É isso que resume muito da adoração moderna: distração e dissimulação. Grupos de louvor e músicas de triunfo parecem ter sido projetados em forma e conteúdo para distrair os adoradores das realidades mais difíceis da vida.

Mesmo funerais, o contexto religioso onde poderia se assumir que a realidade da morte seria inescapável, têm se tornado o contexto para os mais atrozes e incoerentes atos: a celebração de uma vida que agora acabou. O Salmo 23 e o hino “Comigo habita” eram marcas tradicionais de funerais por muitos anos, mas isso parece ter mudado. Referências ao vale da sombra da morte ou à brevidade da vida terreal, lembretes tanto de nossa mortalidade quanto da fidelidade de Deus mesmo nos mais escuros momentos, foram trocados por músicas como “Wind Beneath My Wings” e “My Way”. A economia superficial da adoração como entretenimento chegou até mesmo aos últimos ritos para os que se vão.

Entretanto, a tragédia é parte vital do entretenimento. Aristóteles, em sua obra Poética, argumentou em favor dos benefícios pessoais e sociais do drama trágico. A audiência, levada por crises morais vertiginosas, grandes falhas e as catastróficas quedas dos heróis, usufruía a experiência da catarse – experimentando a vasta gama de emoções – sem serem agentes nos eventos representados no palco. Eles deixavam o teatro lavados pela experiência e sabendo mais profundamente o que é ser humano. Eles estavam mais sábios, mais pensativos e mais bem preparados para enfrentar a realidade de suas próprias vidas.

De todos os lugares, a igreja deveria ser o mais realista. A igreja sabe quão grave foi a queda da humanidade, entende o custo dessa queda tanto na morte de Cristo encarnado quanto na morte inevitável de cada crente. Nos Salmos de lamento, a igreja tem uma linguagem poética para dar expressão aos mais profundos anseios de uma humanidade buscando encontrar paz não nesse mundo, mas no próximo. Nas grandes liturgias da igreja, a morte lança uma longa, criativa e catártica sombra. Nossa adoração deveria refletir as realidades de uma vida que deve enfrentar a morte antes de experimentar a ressurreição.

É, dessa forma, uma ironia do tipo mais perverso que as igrejas tenham se tornado lugares onde a distração Pascaliana e uma noção de entretenimento que exclui o trágico parece dominar de forma tão abrangente quanto fazem no mundo ao nosso redor. Estou certo que a separação dos prédios das igrejas dos cemitérios não foi parte intencional do começo desse processo, mas certamente ajudou a diminuir a presença da morte. A geração atual não passa pela inconveniência de andar pelos túmulos de entes queridos ao se reunirem para adorar. Hoje em dia a morte simplesmente sumiu de dentro das igrejas também.

Na tradição em que fui criado, da igreja Presbiteriana Escocesa, os ritmos mais sóbrios do saltério, os clamores de lamento e fragilidade mortal das vozes cantando sem acompanhamento instrumental ajudava a conectar a adoração de Domingo às realidades da vida. De fato há Salmos de alegria e triunfo. Pais regozijando o nascimento de um filho podem encontrar palavras de gratidão para entoarem ao Senhor, mas também há Salmos que permitem aos enlutados expressar seu sofrimento e sua dor em palavras de adoração a Deus.

Os Salmos como base para a adoração cristã, com seus elementos de lamento e confusão, e a intrusão da morte na vida, tem sido, com frequência, substituídos não por músicas que capturam essa mesma sensibilidade – como muitos dos grandes hinos do passado o fazem – mas por músicas que asseguram o triunfo sobre a morte sem nunca realmente encará-la. O túmulo está vazio, certamente; mas nunca estamos realmente certos do porquê ele esteve ocupado, para começar.

Apenas os morto podem ser ressurretos. Como o segundo ladrão da cruz enxergou tão claramente, a entrada para o reino de Cristo é através da morte, não ao escapar dela. O protestantismo tradicional via isso, conectando o batismo não tanto ao lavar, mas à morte e ressurreição. Liturgias protestantes se asseguravam que a lei seria lida em cada culto, para lembrar as pessoas que a morte era a pena por seu pecado. Somente então, depois da lei pronunciar sua sentença de morte, o evangelho seria lido, chamando-os de seus túmulos para a fé e à vida e ressurreição em Cristo. Assim, a congregação se tornava participante do drama da salvação.

Certamente havia catarse nesse tipo de adoração: a congregação saía a cada semana tendo encarado a mais profunda realidade de seus destinos. Talvez seja irônico, mas a igreja que confronta as pessoas com a realidade da brevidade da vida vivida sob a sombra da morte prepara melhor a congregação para a ressurreição do que a igreja que vai direto para o triunfalismo da ressurreição sem aquela parte estranha que fala sobre morrer.

Dietrich Bonhoeffer questionou certa vez: “Por que é que o cinema tem se tornado muitas vezes mais interessante, mais excitante, mais humano e mais envolvente que a igreja?”. De fato, por que? Talvez a situação seja pior do que eu descrevi; talvez as igrejas sejam mais triviais até que a indústria do entretenimento. Afinal, no entretenimento popular é possível encontrar ocasionalmente o trágico sendo devidamente articulado, como nos filmes de Coppola ou Scorcese.

Uma igreja com uma visão menos realista da vida do que a que se encontra no cinema? Para alguns, isso pode ser um pensamento divertido, até mesmo entretenimento; para mim, é uma tragédia.

Traduzido por Filipe Schulz | iPródigo.com | Original aqui.
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Orare et labutare: A Hermenêutica Reformada das Escrituras - 2/3

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Por Rev. Paulo R. B. Anglada


IV. Principais Correntes de Interpretação 

As classificações normalmente pecam pelo simplismo. É de fato difícil resumir e agrupar adequadamente as diversas ênfases, tendências, princípios e práticas de uma determinada área de estudos, sem negligenciar peculiaridades importantes. Com a hermenêutica não é diferente. Contudo, observando as diferentes ênfases, tendências, princípios e práticas de interpretação das Escrituras adotados no curso da história da Igreja, pode-se perceber pelo menos três correntes gerais nas quais as diversas escolas podem ser de certo modo agrupadas: 

A. Corrente Espiritualista 

Muitos grupos na história da interpretação bíblica se caracterizaram por superenfatizar o caráter espiritual (místico) das Escrituras, em detrimento do seu caráter humano. Esta corrente distingue-se especialmente pela insatisfação generalizada com o sentido natural, literal das Escrituras. Dois dos textos mais explorados são 2 Coríntios 3.6: ‘‘...a letra mata, mas o Espírito vivifica’’ e 1 Coríntios 2.7: ‘‘...falamos a sabedoria de Deus em mistério’’. O maior perigo dessa corrente de interpretação é o subjetivismo e o misticismo. Nenhuma das duas passagens mencionadas prescreve a supremacia de sentidos "espirituais" e ocultos da Escritura sobre sentidos naturais e óbvios. 2 Coríntios 3.6 faz um contraste entre os dois ministérios ou alianças exercidos por Moisés e por Cristo; 1 Coríntios 2.7 trata do mistério de Deus, que é Cristo, mistério agora revelado. Nada há nestas passagens que exaltem sentidos ocultos da Escritura, disponíveis apenas aos "espirituais" ou avançados. Alguns sistemas hermenêuticos pertencentes à corrente espiritualista são descritos abaixo. 

1. A Hermenêutica Alegórica 

Trata-se de um dos métodos de interpretação mais antigos. Fortemente influenciados pelo platonismo e pelo alegorismo judaico, os defensores desse método de interpretação atribuíam diversos sentidos ao texto das Escrituras, enfatizando o sentido chamado de alegórico. 

Clemente de Alexandria (†215) e Orígenes (†254) são os dois principais nomes da escola alegórica de Alexandria, no Egito. Clemente identificava cinco sentidos para um dado texto das Escrituras: 1) histórico, 2) doutrinário, 3) profético, 4) filosófico e 5) místico. Orígenes distinguia três níveis de sentidos: 1) o literal, ao nível do corpo, 2) o moral, ao nível da alma, e 3) o alegórico, ao nível do espírito. 

A hermenêutica alegórica prevaleceu durante toda a Idade Média, especialmente em sua forma quádrupla. Sua origem é provavelmente o sistema hermenêutico de Agostinho. Segundo este método, as passagens das Escrituras teriam quatro sentidos: um sentido literal, e três sentidos espirituais: moral, alegórico e anagógico. O sentido literal seria o registro do que aconteceu (o fato); o sentido moral conteria uma exortação quanto à conduta (o que fazer); o sentido alegórico ensinaria uma doutrina a ser crida (o que crer); e o sentido anagógico apontaria para uma promessa a ser cumprida (o que esperar). Assim, uma referência bíblica sobre a água, teria um sentido literal (a água), um sentido moral (exortação a uma vida pura), um sentido alegórico (o sacramento do batismo), e um sentido anagógico (a água da vida na Nova Jerusalém).[4]

Este método pode fornecer esplêndidas interpretações, mas rouba o real significado do texto, desviando a atenção do leitor do seu verdadeiro sentido, que o Espírito Santo intentou transmitir. 

O caráter fantasioso deste método de interpretação fica manifesto na conhecida interpretação alegórica de Orígenes[5] da parábola do bom samaritano (Lc 10.30-37). Segundo ele, o homem atacado pelos ladrões simbolizava Adão (a humanidade); Jerusalém, os céus; Jericó, o mundo; os ladrões, o diabo e suas hostes; o sacerdote, a lei; o levita, os profetas; o bom samaritano, Cristo: o animal sobre o qual foi colocado o homem ferido, o corpo de Cristo (que suporta o Adão caído); a estalagem, a igreja; as duas moedas, o Pai e o Filho; e a promessa do bom samaritano de voltar, a segunda vinda de Cristo.[6] 

Outro exemplo do caráter fantasioso desse método de interpretação pode ser percebido nas diferentes interpretações alegóricas atribuídas às duas moedas mencionadas nessa parábola: o Pai e o Filho, o Antigo e o Novo Testamento, os dois mandamentos do amor (a Deus e ao próximo), fé e obras, virtude e conhecimento, o corpo e o sangue de Cristo, etc. 

2. A Hermenêutica Intuitiva 

Muitos são consciente ou inconscientemente adeptos desta corrente de interpretação bíblica. Também chamados de impressionistas,[7] os hermeneutas intuitivos caracterizam-se por identificar a mensagem do texto com os pensamentos que lhes vêm à mente ao lê-lo, sem contudo dar a devida atenção à gramática, ao contexto e às circunstâncias históricas, geográficas, culturais, religiosas, etc. Um passo adiante estão os místicos, que aqui e ali aparecem na história da igreja, com a sua ênfase na iluminação interior. Uma versão moderna do método de interpretação intuitiva pode ser verificada na prática de abrir as Escrituras ao acaso para pregar ou encontrar uma mensagem para uma ocasião específica, sem o devido estudo do texto e do seu contexto histórico. 

3. A Hermenêutica Existencialista 

Há uma escola contemporânea de interpretação das Escrituras que enfatiza excessivamente o conhecimento subjetivo em detrimento do seu sentido gramatical e histórico. Trata-se da assim chamada nova hermenêutica, que nada mais é do que um desenvolvimento dos princípios hermenêuticos de Bultmann, com sua ênfase na relevância da mensagem do Novo Testamento para o homem contemporâneo. 

Para Bultmann e para a nova hermenêutica — reconhecidamente influenciados pela filosofia existencialista de Martin Heidegger[8] — o importante não é a intenção do autor, nem o que o texto falou aos seus leitores originais, mas o que fala a nós, hoje, no nosso contexto: esse é o sentido do texto. Para a hermenêutica existencialista o importante mesmo não é o texto, mas o que está por trás dele. Não interessa tanto o que o texto diz (historicamente), mas o que ele quer dizer (existencialmente). Logo, as Escrituras só serão interpretadas realmente se lidas existencialmente, se forem experimentadas. Ou seja, as Escrituras não são objetivamente a Palavra de Deus, elas se tornam Palavra de Deus, quando nos falam subjetivamente. 

Talvez as principais críticas à hermenêutica existencialista sejam que ela rejeita o elemento sobrenatural das Escrituras (milagres, encarnação, ressurreição, etc.) como sendo mitos, e que torna subjetivo o conceito de Palavra de Deus, com sua ênfase existencialista. Com isso, ela esvazia a mensagem bíblica e, assim como o método alegórico e o método intuitivo, abre espaço para se ler no texto quaisquer idéias ou conceitos originados na mente do leitor.[9]

B. Corrente Humanista 

No extremo oposto da corrente espiritualista encontra-se a corrente que se pode chamar de humanista. Esta corrente caracteriza-se por dar ênfase excessiva ao caráter humano das Escrituras e por uma aversão ao seu caráter sobrenatural. A ênfase dessa corrente está no método, na técnica, nos aspectos literários ou históricos das Escrituras, em detrimento do seu caráter divino, espiritual e sobrenatural. 

1. Precursores 

Os saduceus, com o seu repúdio à doutrina da ressurreição e descrença na existência de seres angelicais, podem ser considerados como precursores dessa corrente de interpretação das Escrituras.[10] Pouco se sabe sobre a origem desse partido judaico, mas parece haver adotado uma posição secular-pragmática de interpretação das Escrituras.Ao negarem verdades básicas das Escrituras, os saduceus podem ser considerados, guardadas as devidas proporções, como os modernistas ou liberais da época.[11] 

2. Humanismo Renascentista 

Os humanistas renascentistas, com seu interesse meramente literário e acadêmico nas Escrituras, e com sua ênfase na moral, também podem ser incluídos nesta corrente de interpretação bíblica. Alguns se dedicaram ao estudo das Escrituras, outros chegaram até a editar textos bíblicos na língua original. Mas o interesse deles era meramente acadêmico, lingüístico, literário e histórico. Estavam interessados nas Escrituras por sua antigüidade e não por serem a Palavra de Deus. 

3. Escola Crítica 

A escola mais característica e influente desta corrente de interpretação bíblica é a escola crítica, com o seu método histórico-crítico. Uma das razões para o surgimento do método histórico-crítico parece ter sido ‘‘a pretensão de tornar científicos os estudos bíblicos, ou seja, faze-los compatíveis com o modelo científico e acadêmico da época.’’[12] E o resultado desta nova postura para com as Escrituras (crítica, ao invés de gramatical) foi o liberalismo teológico que tem assolado a Igreja desde o século passado. 

Trata-se sem dúvida de uma hermenêutica racionalista. Ao invés da revelação governar a razão, a razão é que determina a revelação. A razão e o intelecto passaram a ser determinantes, sendo rejeitado como erro, fábula ou mito tudo o que não puder ser explicado ou harmonizado com a razão. 

Os adeptos desta corrente rejeitam as doutrinas reformadas das Escrituras, tais como inspiração, autoridade, inerrância, e preservação; enfatizam a moralidade e descartam o sobrenatural. Sob forte influência do evolucionismo de Darwin e da dialética de Hegel, as Escrituras deixaram de ser vistas como a Palavra de Deus inspirada na qual ele se revela ao homem, passando a ser considerada ‘‘como um registro do desenvolvimento evolucionista da consciência religiosa de Israel (e mais tarde da Igreja)’’.[13] O conceito liberal de inspiração das Escrituras só é objetivo no sentido de as Escrituras serem o objeto da inspiração. No mais, é subjetivo: elas são o sujeito: elas é que inspiram, com o ‘‘seu poder de inspirar experiências religiosas’’.[14] 

Na prática, portanto, a principal característica da escola crítica de interpretação é o pressuposto de que as Escrituras devem ser estudadas do mesmo modo que as demais literaturas antigas, pelo emprego das mesmas metodologias. Esta postura, crítica, com sua ênfase apenas no caráter humano das Escrituras, resultou em uma série de metodologias críticas de caráter histórico ou lingüístico que vêm sendo empregadas na interpretação das Escrituras. 

A crítica ou história da tradição é uma dessas metodologias, cuja pretensão é ‘‘descobrir a história percorrida por determinado trecho, no âmbito da tradição oral, ou seja, na fase anterior à sua fixação literária mais antiga’’.[15] Isto é: estudar como os eventos históricos e ensinos originais de Jesus teriam dado origem às diversas formas de tradições orais até o seu registro escrito. Seu propósito é ‘‘destradicionalizar’’ (semelhante à desmitologização de Bultmann) os Evangelhos, em busca do ‘‘fato’’ ou ensino ‘‘original’’.[16] 

A crítica da forma é outra metodologia crítica. Sua pretensão é classificar os escritos do Novo Testamento em gêneros literários e identificar as tradições que teriam dado origem às fontes empregadas pelos autores do Novo Testamento. Segundo os teóricos da crítica da forma,[17] os evangelhos provém de tradições orais não cronológicas existentes (chamadas de paradigmas, novelas, lendas, mitos e exortações). Posteriormente essas tradições orais teriam sido organizadas em relatos cronológicos escritos que foram empregados pelos evangelistas. Mas a teoria é extremamente especulativa, visto que não explica como esses gêneros teriam surgido e se desenvolvido. Além disso, não existe registro histórico dessas supostas coleções não cronológicas.[18] 

Outra metodologia desenvolvida pela escola crítica de interpretação é a crítica das fontes. De acordo com esta teoria há muito pouco nos evangelhos (especialmente nos sinópticos) originário dos evangelistas. Eles teriam sido mais coletores e editores dos diversos relatos (tradições escritas) existentes sobre a vida de Jesus do que propriamente autores. A teoria se baseia nas palavras de Lucas no início do seu evangelho (cf. Lc 1.1,3), e na observação de que os evangelhos de Mateus e Lucas normalmente concordam literalmente com o evangelho de Marcos (ambos ou cada um isoladamente), enquanto que raramente concordam entre si, quando discordam de Marcos. 

A conclusão mais comum a que se chegou é que Mateus e Lucas foram copiados de Marcos (quando concordam com ele) e de outra suposta fonte chamada "Q", quando concordam entre si, mas discordam de Marcos. 

Não há, contudo, concordância entre os críticos da forma. As evidências internas (baseadas em supostas inconsistências cronológicas, estilísticas, teológicas e históricas) a favor dessa teoria são bastante limitadas, subjetivas, ambíguas e contraditórias com as evidências externas (afirmativas dos pais da igreja que apontam de modo unânime em direção oposta).[19] Muitas outras possibilidades tornam qualquer conclusão extremamente incerta. Marcos poderia ter usado Mateus e Lucas; os três evangelistas podem ter usado as mesmas fontes; Jesus pode ter repetido ensinos e parábolas com palavras diferentes em ocasiões diferentes, etc. A verdade é que não se sabe com exatidão como os evangelistas escreveram seus evangelhos. 

Parece evidente que pelo menos um, Lucas, lançou mão de algumas fontes, mas conforme ele mesmo afirma, ele e suas fontes basearam-se no que lhes transmitiram ‘‘testemunhas oculares’’ dos acontecimentos (Lc 1.2). Entretanto, não há meios de saber concretamente que fontes foram estas e até que ponto e como as usaram. Isso torna a crítica da forma necessariamente especulativa. De concreto, mesmo, têm-se os Evangelhos, como Palavra de Deus escrita por homens inspirados (movidos) pelo Espírito Santo, fundamentados no que testemunharam e no testemunho de outras testemunhas oculares, e, portanto, fidedignas. 

Além dessas metodologias, há também a crítica da redação, que se propõe a estudar como os evangelistas teriam usado (editado) as suas supostas fontes na composição dos evangelhos; isto é, que mudanças peculiares (ou contribuições) teriam sido introduzidas pelos evangelistas às fontes que usaram, e com que propósito (especialmente teológico).[20] Mas, a que conclusões seguras se pode chegar com a crítica da redação, se nem mesmo há certeza alguma com relação ao uso das fontes? 

Por fim, pode ser mencionado o criticismo histórico. Sua pretensão é avaliar a historicidade das narrativas bíblicas, ou, como escreve Marshall, ‘‘...testar a precisão do que se propõe ser uma narrativa histórica.’’[21] Mas este propósito não é somente pretensioso (inconsistente do ponto de vista bíblico); é também tendencioso, na medida em que explora as aparentes contradições internas (especialmente entre as passagens paralelas dos evangelhos) e externas (com fontes seculares e históricas); e encara os relatos de ocorrências sobrenaturais por uma perspectiva altamente especulativa. Assim, o criticismo histórico não vê os textos paralelos como complementares, mas como contraditórios; atribui às fontes seculares autoridade superior à das Escrituras; rejeita as intervenções sobrenaturais; e considera muitas narrativas históricas como invenção da igreja, novelas ou mitos. 

O gráfico a seguir resume estas metodologias críticas do método histórico-crítico de interpretação dos evangelhos, em ordem lógica.


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Os resultados de todas estas metodologias críticas são inseguros, questionáveis e dúbios, e sua aplicação prática extremamente limitada (se possível). São hipóteses construídas sobre especulações infrutíferas que não contribuem em praticamente nada para a compreensão do texto do Novo Testamento, a não ser para lançar dúvidas sobre a sua inspiração, autoridade e inerrância.[22] 

Não obstante, parece que a corrente humanista de interpretação das Escrituras tem começado a prevalecer em um número considerável de seminários teológicos no nosso país. A ênfase hermenêutica destes seminários está no método, na técnica, nos aspectos literários ou históricos das Escrituras, em detrimento do seu caráter divino, espiritual e sobrenatural. A metodologia predominante tem sido o método histórico-crítico. E, em virtude da impossibilidade de conciliar este método com as doutrinas bíblicas da inspiração, autoridade, suficiência, inerrância e preservação das Escrituras, muitos destes seminários têm se afastado cada vez mais da verdadeira fides reformata (fé reformada). 

Como os resultados das metodologias críticas empregadas pelo método histórico-crítico são quase sempre infrutíferos, e sua aplicação prática extremamente limitada, não é incomum que o produto final de muitos dos nossos seminários seja formandos despreparados para o ofício de ministros da Palavra. Nesta condição, não é de estranhar que, como observou Lopes, ‘‘...os púlpitos de bom número das igrejas evangélicas destilam uma espécie de sermão onde pouca ou nenhuma atenção se dá ao sentido original do texto bíblico’’.[23] Destilam também, acrescento, teologias imprecisas e inconsistentes, que pouco edificam os membros de suas congregações. 

Continua...

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Isaque e Rebeca: Base para Viver Juntos sem Casar?

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Por Rev. Augustus Nicodemus Lopes


Alguns queridos amigos têm apelado para o episódio do encontro de Isaque com Rebeca como base para sua posição de que, na Bíblia, o casamento é a decisão de duas pessoas de se unirem diante de Deus e terem relações sexuais. Não precisa de cerimônia pública, compromisso formal, testemunhas, pais, parentes, autoridades, etc. A passagem é esta aqui:

Isaque conduziu-a até à tenda de Sara, mãe dele, e tomou a Rebeca, e esta lhe foi por mulher. Ele a amou; assim, foi Isaque consolado depois da morte de sua mãe” (Gen 24:67).

O argumento é que o casamento de Isaque e Rebeca foi simplesmente terem tido relações na tenda, sem nenhuma formalidade.

Acho que mexeram com o versículo errado... como sempre, texto fora do contexto é pretexto. É só ler o capítulo 24 de Gênesis todo para se perceber que na verdade, quando Isaque e Rebeca se encontraram e foram para a tenda, eles já eram casados.

Explico.

Abraão manda seu servo ir até a casa de seus parentes na Mesopotâmia para de lá “tomar uma esposa” para seu filho Isaque (Gn 24.4). Para isto, ajuramentou o servo, que foi como seu representante, ou procurador (Gn 24.2-4 e 8-9). Naquela época os casamentos eram geralmente arranjados pelos pais e por vezes se usava a figura de um representante legal. Aliás, até hoje, é possível casar por procuração.

O servo-procurador foi, orando para que Deus mostrasse quem seria a esposa para Isaque (Gn 24.12-14). Quando ficou claro que era Rebeca, o servo-procurador lhe entregou presentes, que já apontavam para um pedido oficial de casamento (como alianças de noivado, por exemplo), e pediu para conhecer a família dela (Gn 24.22-26).

A família era composta da mãe e do irmão Labão, que era o patriarca da família (o pai havia morrido), o que naquela época significava aquele que fazia o papel do líder religioso e civil. É só verificar o episódio mais adiante, em que ela casa as suas duas filhas, Lia e Raquel, com Jacó (Gn 29).

Voltando ao relato... Diante da mãe e do irmão de Rebeca, o servo-procurador fez a proposta de casamento, repetindo a missão que lhe fora dada: achar uma esposa para Isaque (Gn 24.28-49). Houve a permissão da mãe e do irmão (Gn 24.50-51) e em seguida perguntaram a Rebeca: “queres ir com este homem?”, ao que ela respondeu “irei” (Gn 24.57-58) – algo bastante parecido com “você aceita este homem como seu legítimo esposo?” – “sim, aceito”. E não faltou nem bênção: Labão, como patriarca da família, abençoou Rebeca na saída (Gn 24.60 – a frase “és nossa irmã” sugere que foi Labão quem deu esta bênção).

Mais casados do que isto, impossível.

Portanto, quando depois da longa viagem Rebeca encontra Isaque, e o servo-procurador relata tudo o que aconteceu (Gn 24.61-66), quem Isaque leva para a tenda para ter relações sexuais é sua legítima esposa, e não uma jovem que ele havia encontrado vagando pelo campo.

Portanto, o episódio Isaque-Rebeca é, na verdade, mais uma evidência de que o casamento em Israel não era simplesmente ir para uma tenda ter relações.

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Domingo - o dia que o Senhor fez

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Por Pr. Edmar Cunha de Barcellos


Este é o dia que o Senhor fez; regozijemo-nos e alegremo-nos nele” (Sl 118.24)

“Domingo, no Novo Testamento, é chamado de ‘O dia do Senhor’. Em latim, dominica die, de onde deriva seu nome nas línguas neolatinas, por exemplo: no espanhol, ‘domingo’; no italiano, ‘domenica’; e no francês, ‘dimanche’, faladas por cerca de 400 milhões de pessoas”. 

Domingo é um vocábulo exclusivo do cristianismo. Essa palavra, bem como as suas análogas, não existia em nenhuma língua do mundo até o final do século 1o, quando o apóstolo João criou a expressão grega: Kuriakh Hmera (kyriake hemera), vertida para o latim como: dominica die. 

Antigos documentos da Igreja primitiva, transcritos para o russo, relatam que João, encarcerado na ilha de Patmos, chorava muito ao chegar o primeiro dia da semana, ao lembra-se das uniões para a Ceia do Senhor, celebrada sempre nesse dia: “No primeiro dia da semana, ajuntando-se os discípulos para partir o pão...” (At 20.7). E foi justamente em um “primeiro dia da semana” que Jesus, ressuscitado, lhe apareceu e lhe revelou os maravilhosos eventos do Apocalipse (Ap 1.10).

Certamente que todo o livro não foi elaborado naquele mesmo dia. Mas o fato indiscutível é que Jesus apareceu a João exatamente no “primeiro dia da semana”. Isso explica porque a Ucrânia e a Rússia trocaram os nomes do primeiro dia da semana, que entre os pagãos era chamado “dia do sol”, por uma expressão tão ou mais significativa do que aquela adotada nos países de línguas neolatinas. 

Lemos na Bíblia ucraniana João afirmando que foi arrebatado no “dia da ressurreição” (Dien voscrecii). De igual modo, na Bíblia russa também lemos: “Eu fui arrebatado em espírito, no dia da ressurreição”. Aliás, na língua russa, todos os dias da semana ficaram subordinados ao dia da ressurreição! Por exemplo: segunda-feira, em russo, é pondielnik (“o dia após a ressurreição”); terça-feira, voftornik (“o segundo dia após a ressurreição”); quarta-feira, sreda (“terceiro dia após a ressurreição”), e assim por diante. 

Vale realçar que o apóstolo João, ao frisar o dia da semana em que Jesus lhe apareceu, criou uma nova expressão na língua grega: Kuriakh hmera (kyriake hemera). Expressão esta que deu origem à palavra “domingo”, conforme explanaremos a seguir. Mas antes de continuarmos, para melhor compreensão dos nossos argumentos, recorreremos à etimologia, que nos revelará a origem das palavras, o seu desenvolvimento histórico e as possíveis mudanças de seu significado.

Vejamos alguns exemplos de como as palavras evoluem:

• A palavra “efeméride” provém de dois termos gregos: epi (“sobre”) e ‛he hemera, que significa “dia”, de onde veio também o adjetivo efêmero, ou seja, “o que é breve, transitório, passageiro”.

• A palavra “castigar” provém do latim: castus (“irrepreensível”, “puro”, “fiel”) + agere (“fazer”). Temos um emprego bíblico neste sentido quando o escritor aos hebreus declara que Deus “castiga a quem ama” com a finalidade de nos tornar puros e fiéis a Ele (Hb 12.6).

• As palavras “mouco” (ou surdo) e “domingo” possuem também sua origem num texto de João. Vejamos: “Então Simão Pedro, que tinha espada, desembainhou-a, e feriu o servo do sumo sacerdote, cortando-lhe a orelha direita. E o nome do servo era Malco” (Jo 18.10). Malcus, do latim, deu origem à palavra “mouco”, em português, significando aquele que não ouve, ou que ouve pouco ou mal; surdo.

Analisemos, agora, Apocalipse 1.10 à luz do original grego, da etimologia, da hermenêutica bíblica, da história e dos escritos patrísticos. 

Eis o que os mais abalizados biblicistas afirmam sobre a expressão joanina: kyriake hemera:

“Temos aqui a palavra kyriakos, em um sentido adjetivado, isto é, “pertencente ao Senhor”. Originalmente, esta palavra era usada com o sentido imperial, como algo que pertencia ao César romano. ‘Os crentes primitivos [...] aplicaram-na ao domingo, o primeiro dia da semana’. Esse é o uso que se encontra em Didaché 14 e Inácio, Magn. 9, que foram escritos não muito depois do Apocalipse”. 

“‘O dia do Senhor’, em Apocalipse 1.10, é tido pela maioria dos autores como o domingo”. 

“O primeiro dia da semana é, sem dúvida. ‘o dia do Senhor’, referido em Apocalipse 1.10”. 

“A frase: ‘O dia do Senhor’, Kuriakh ‛mera (kyriake hemera), ocorre uma só vez, e isto se dá no último livro. Apocalipse 1.10 [...] expressava a convicção de que o domingo era o dia da ressurreição, quando Cristo Jesus conquistou a morte e se tornou Senhor de todos” (Ef 1.20-22; grifo do articulista). 

Nem mesmo no texto grego da Septuaginta encontramos a expressão Kuriakh‛mera, criada pelo apóstolo João para aludir ao dia da ressurreição! A expressão hebraica “dia do Senhor” sempre foi vertida para o grego como ‛ (hemera tou kyriou). Mas o que João escreveu foi: Kuriakh ‛mera. Por que João teria usado uma expressão jamais encontrada em qualquer outro escrito, sagrado ou profano? Cremos que pelas seguintes razões:

1) Para indicar algo também inédito na história da humanidade: a ressurreição de Cristo.

2) Para deixar bem claro que se referia ao dia da ressurreição, o domingo, e não aos eventos escatológicos da segunda vinda de Cristo, a parusia, que também é chamada “dia do Senhor”, como nestes versículos: 

a) “O sol se converterá em trevas, e a lua, em sangue, antes de chegar o grande e glorioso dia do Senhor” (At 2.20).

b) “... Seja entregue para destruição da carne, para que o espírito seja salvo no dia do Senhor” (1Co 5.5).

c) “Porque vós mesmos sabeis muito bem que o dia do Senhor virá como o ladrão de noite” (1Ts 5.2).

d) “Mas o dia do Senhor virá como o ladrão de noite” (2Pe 3.10).

Há uma significativa diferença entre a expressão “dia do Senhor”, alusiva à segunda vinda de Cristo, e a expressão que encontramos escrita em Apocalipse 1.10, “dia do Senhor”, referindo-se ao dia da ressurreição.

Kyriakos é uma forma adjetivada da palavra KurioV (Kýrios – Senhor) e significa literal e exatamente: “que diz respeito ao Senhor”; “concernente ao Senhor”; “pertencente ao Senhor”; “senhorial”, ou “dominical”, e não “do Senhor”, como lemos em algumas das nossas traduções.

A tradução literal de Apocalipse 1.10 seria: “Eu fui arrebatado pelo espírito no dia senhorial”. Mas este adjetivo, “senhorial”, derivado do termo “senhor”, raramente é usado. O seu sinônimo é “dominical”, porque o português é uma língua neolatina. “Senhor”, em latim, é Dominus. Assim, quando dizemos Dom Pedro II ou Dom Evaristo Arns, estamos abreviando a palavra Dominus, para dizer: Senhor Pedro II, Senhor Evaristo Arns. O mesmo processo etimológico acontece com o adjetivo “popular”. Quando algo pertence ao povo, não dizemos “povoal”, mas “popular”, porque, em latim, populus, significa “povo”.

Acertadamente, Jerônimo verteu Kuriakh ‛mera (kyriake hemera) para a Vulgata Latina como Dominica die (“dia dominical”, “domingo”) e não como dia domini (“dia do Senhor”). Veja:

Fui in spiritu in dominica die et audivi post me vocem magnam tamquam tubae”(Ap 2.10). 

Daí, a clássica versão de Antônio Pereira de Figueiredo traduzir: “Eu fui arrebatado em espírito hum dia de domingo, e ouvi por detrás de mim huma grande voz, como de trombeta” (1819). 

Resgatando verdades históricas

Documentos escritos nos três primeiros séculos, muito antes de Constantino existir (280-337), adotaram e conservam, todos eles, a mesma expressão concebida pelo apóstolo João para referir-se ao glorioso dia da ressurreição de Jesus Cristo.

Século 1º: O ensino dos apóstolos

Possivelmente, contemporâneo do Apocalipse: “E no dia do Senhor Kyriake hemera, congregai-vos para partir o pão e dai graças”. 

Século 2º : Escritos de Melito de Sardes

Nestes escritos, há um tratado sobre a adoração no domingo, intitulado: peri kyriakes (acerca do dia dominical), “dia do Senhor”, isto é, “domingo”. 

Ano 115: Epístola de Inácio aos magnesianos

“Porque se no dia de hoje vivermos segundo a maneira do judaísmo, confessamos que não temos recebido a graça [...] Assim pois, os que haviam andado em práticas antigas alcançaram uma nova esperança, já sem observar os sábados, porém modelando suas vidas segundo o ‘dia do Senhor’ (Kyriaken zontes)”. 

Ano 130: O “evangelho de Pedro”

É um documento histórico comprovadamente escrito no princípio do século 2o, e também se refere ao dia da ressurreição usando o mesmo adjetivo kyriakes, que, na edição de Jorge Luís Borges, é traduzido corretamente por “domingo”. 

Ano 132, ou antes: Epístola de Barnabé

“Portanto, também nós guardamos o oitavo dia ( Kyriake hemera, ‘domingo’) para nos alegrarmos em que também Jesus se levantou dentre os mortos e, havendo sido manifestado, ascendeu aos céus”. 

150—168: Justino Mártir, Eusébio, Clemente de Alexandria

Escritores dos séculos 2º e 3º, todos eles também adotaram o Kyriake hemera criado por João para o “dia da ressurreição”, vertido para o latim como Domínica die (“dia dominical”) e passado para o português como “domingo”! 

A singularidade do nome domingo

E Jesus, tendo ressuscitado na manhã do primeiro dia da semana...” (Mc 16.9).

Alguns alegam que a palavra “domingo” não consta na Bíblia. É verdade. Não encontramos nos textos originais a palavra portuguesa “domingo”, como também não encontramos as palavras: Deus, casa, livro, amor ou sábado, mas, sim, as suas correspondentes nas línguas hebraica, aramaica ou grega.

Domingo é a tradução literal da expressão criada pelo apóstolo João: Kuriakh ‛mera (kyriake hemera), vertida para o latim como Domínica die e corretamente traduzida em todas as versões da Vulgata para as línguas neolatinas como dominu lui, domingo, mingo, domenica, dimanche, e outros nomes semelhantes no galego, no provençal, no franco-provençal, no romeno, no reto-romano, no sardo e no dalmático, faladas por mais de 400.000 000 de pessoas!

As seguintes traduções: de Antônio Pereira de Figueiredo, do Centro Bíblico Católico, dos Monges de Maredsous, de João José Pedreira de Castro, do dr. José Basílio Pereira, do Mons. Vicente Zioni e Matos Soares, bem como qualquer outra versão do Novo Testamento para o português ou para o espanhol, feita da Vulgata Latina, trazem em Apocalipse 1.10 a palavra “domingo”.

Domingo não é um nome importado do paganismo, como saturday (“dia de Saturno”), nem do judaísmo, como shabath (“descanso”). 

Domingo não é dia comemorativo da criação do mundo nem da libertação do povo de Israel, tampouco dia de descanso, pasmaceira, televisão, futebol, pescarias, clubes ou jogatina.

Domingo é dia de oração, de adoração, dia de cultuarmos a Deus, dia de atividade espiritual, como evangelismo, visita aos necessitados, aos encarcerados ou enfermos!

Domingo é o nome de um dia exclusivo do cristianismo, criado por João para caracterizar e distinguir o dia da vitória de Jesus sobre a morte, consumando a libertação de toda a humanidade.

Domingo é o dia aclamado por Davi, em sua jubilosa profecia sobre o dia da ressurreição: “Esta é a porta do SENHOR, pela qual os justos entrarão. Louvar-te-ei, pois me escutaste, e te fizeste a minha salvação. A pedra que os edificadores rejeitaram tornou-se a cabeça da esquina. Da parte do SENHOR se fez isto; maravilhoso é aos nossos olhos. Este é o dia que fez o SENHOR; regozijemo-nos, e alegremo-nos nele” (Sl 118.20-24).

Observemos a exatidão do cumprimento de cada sentença, de cada afirmação, de cada palavra desta impressionante profecia escrita por volta de mil anos antes de Jesus nascer.

Esta é a porta

Eu sou a porta; se alguém entrar por mim, salvar-se-á, e entrará, e sairá, e achará pastagens” (Jo 10.9).

Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5.1).

Porque por ele ambos temos acesso ao Pai em um mesmo Espírito” (Ef 2.18).

A pedra

Ele é a pedra que foi rejeitada por vós, os edificadores, a qual foi posta por cabeça de esquina” (At 4.11).

Os edificadores rejeitaram

Diz-lhes Jesus: Nunca lestes nas Escrituras: A pedra, que os edificadores rejeitaram, essa foi posta por cabeça do ângulo; pelo Senhor foi feito isto, e é maravilhoso aos nossos olhos? Portanto, eu vos digo que o reino de Deus vos será tirado, e será dado a uma nação que dê os seus frutos” (Mt 21.42,43).

Da parte do Senhor se fez isto

O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus, ao qual vós matastes, suspendendo-o no madeiro” (At 5.30).

Maravilhoso é aos nossos olhos

Ao qual Deus ressuscitou, soltas as ânsias da morte, pois não era possível que fosse retido por ela” (At 2.24).

Este é o dia que fez o SENHOR

E, no fim do sábado, quando já despontava o primeiro dia da semana, Maria Madalena e a outra Maria foram ver o sepulcro” (Mt 28.1).

E, no primeiro dia da semana, foram ao sepulcro, de manhã cedo, ao nascer do sol” (Mc 16.2).

E no primeiro dia da semana, muito de madrugada, foram elas ao sepulcro, levando as especiarias que tinham preparado, e algumas outras com elas” (Lc 24.1).

E no primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao sepulcro de madrugada, sendo ainda escuro, e viu a pedra tirada do sepulcro” (Jo 20.1).

Chegada, pois, a tarde daquele dia, o primeiro da semana, e cerradas as portas onde os discípulos, com medo dos judeus, se tinham ajuntado, chegou Jesus, e pôs-se no meio, e disse-lhes: Paz seja convosco” (Jo 20.19).

E no primeiro dia da semana, ajuntando-se os discípulos para partir o pão, Paulo, que havia de partir no dia seguinte, falava com eles; e prolongou a prática até a meia-noite” (At 20.7).

No primeiro dia da semana cada um de vós ponha de parte o que puder ajuntar, conforme a sua prosperidade, para que não se façam as coletas quando eu chegar" (1Co 16.2).

Regozijemo-nos, e alegremo-nos nele

Assim também vós agora, na verdade, tendes tristeza; mas outra vez vos verei, e o vosso coração se alegrará, e a vossa alegria ninguém vo-la tirará” (Jo 16.22). 

Regozijai-vos sempre” (1Ts 5.16).

Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos” (Fp 4.4).

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Notas:
- Enciclopédia Encarta 99. 1993-1998 Microsoft Corporation, sobre o verbete: domingo.
- Patrísticos. Escritos dos proeminentes líderes cristãos dos primeiros séculos, também chamados “pais da Igreja”.
- Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. Editora e distribuidora Candeia, 1991, vol. 2, p. 213.
- HENRY Mattthew. Comentário Bíblico. Editorial Clie (Barcelona),1999, p.1924-c
- PETTINGILL William D.D. Bible Questions Answered, p.177. “The first day of the week is doubtless ‘the Lord’s day’ refereed to in Ap 1.10”. Zondervan Publishing House, Ninth Printing, Michigan, 1974.
- ELWELL A. Walter. Enciclopédia Histórica Teológica da Igreja Cristã. Soc. Religiosa Edições Vida Nova, 1988.
- Septuaginta, Versão dos LXX, ou Alexandrina, é uma tradução do Antigo Testamento hebraico para o grego feita em Alexandria, a mando de Ptolomeu II (Filadelfo) (284-247 a.C.). Alguns livros não pertencentes ao cânon judaico foram incluídos nessa versão: (Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, I e II Macabeus, e acréscimos aos livros de Ester e Daniel). Jerônimo verteu para a Vulgata Latina, explicando que tais livros não pertenciam às Escrituras Sagradas judaicas. Mas o Concílio de Trento, em 1548, os anexou ao Antigo Testamento, classificando-os como “Deuterocanônicos”. Para os judeus, e para os evangélicos, porém, continuam sendo “apócrifos”, úteis apenas como subsídios ao estudo da história e da cultura judaica, mas sem a autoridade dos livros canônicos, inspirados por Deus.
- IUXTA VULGATAM VERSIONEM Robertus Weber, Editio Altera Emendata, Stuttgart,1975.
- Primeira edição completa da Bíblia Católica. Lisboa, MDCCC XVIIII. Na Officina da Acad. R. das Sciencias com licença da Meza do Desembargo do paço e privilégio.
- (Didaché Ton Apostollon). O Ensino dos Apóstolos, XIV. Libros Clie. Barcelona, Espanha.
- R.N.Chaplin & J.M. Bentes. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. 1991, vol. 2, p.213.
- IGNÁCIO. (Pros tous magnesiai). Aos magnesianos IX.
- Evangelios Apócrifos. Vol. 1, p.323-5. Hyspamérica ediciones S.A.Santiago, 12. 28013 Madrid, 1985.
- Epístola de Barnabé, 15. LIGHTFOOT, J. B. Los Padres Apostólicos, p. 299-301- Libros Clie. Barcelona, Espanha.
- R.N.Chaplin & J.M. Bentes. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. 1991, vol. 2, p. 214.

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Fonte: ICP
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